Rosa Maria Marques
Nunca foi tão evidente a quão necessária se faz uma proteção social pública que garanta aposentadorias e pensões adequadas, que promova ações e serviços de saúde para todos e que apoie, com benefícios e serviços, os setores de mais baixa renda. Esse é um dos aspectos provocado pela chegada do coronavírus no Brasil.
A situação de nosso sistema de proteção social, por pouco, não é igual àquela revelada pela resposta dos cientistas estadunidenses ao pedido do presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, para que desenvolvessem uma vacina contra o Covid-19. Mas os impactos de três anos e meio de austeridade no tratamento da coisa pública, da reforma trabalhista, do quase inexistente desempenho econômico e a reforma previdenciária provocaram o sucateamento de parte do serviço público, o aumento da desigualdade e da exclusão e o empobrecimento de parcela significativa da população brasileira, fragilizando-a ainda mais frente ao avanço do Covid-19.
A perda de direitos e a Previdência
O ano de 2019 ficará na memória dos trabalhadores brasileiros. Nele, foi completada a maior investida realizada contra os direitos, modificando profundamente a proteção garantida pelo Estado na relação capital/trabalho. O início dessa investida ocorreu em 2017, durante o governo de Michel Temer (que sucedeu a Dilma Rousseff por ocasião do impeachment).
Sob um discurso de modernização, adotando a lógica da maximização da eficiência, redução de custos e estabelecimento de mercados competitivos, o Brasil, seguindo uma tendência mundial, aprovou, no ano de 2017, a lei que regulamentou a terceirização (Lei nº 13.429) e a reforma trabalhista (Lei nº 13.467), (BERWIG, 2018). Nesse momento, a reforma trabalhista empreendida alterou 117 artigos e 200 dispositivos da Consolidação das Leis do Trabalho (CLT), conjunto de leis que dispunham sobre o mercado de trabalho, aumentando a flexibilização e a precarização laboral, e concedendo garantia jurídica sobre o custo da força de trabalho aos capitalistas, estrangeiros ou locais, que queiram investir no país e competir ou não no mercado internacional (maiores detalhes em MARQUES e UGINO, 2017).
O final do avanço contra os direitos dos trabalhadores ocorreu em 2019, já sob a presidência de Jair Bolsonaro, quando foi aprovada a reforma do sistema de pensões. A reforma da Previdência Social, aprovada na Câmara dos Deputados em agosto e, no Senado, em outubro de 2019, constitui a mais radical mudança realizada desde a Constituição de 1988, isto é, da Carta que constitui o marco demarcatório com relação ao período ditatorial anterior.
Antes dela, houve alterações em certos aspectos das condições de acesso às pensões, tanto no governo de Fernando Henrique Cardoso (FHC), em 1998, como no de Luiz Inácio Lula da Silva (Lula), em 2003, mas nenhuma delas teve a amplitude da realizada por Jair Bolsonaro que alterou, entre outros pontos, os parâmetros que definem o valor e as condições de acesso à aposentadoria e pensões.
A amplitude das mudanças
Para se entender a amplitude dessa reforma, é preciso lembrar duas características da realidade brasileira. A primeira delas diz respeito ao mercado de trabalho, que é integrado por dois grupos de trabalhadores: os com direitos sociais garantidos e os outros. Esses outros formam um amplo contingente: em dezembro de 2019, 41,1% dos ocupados estavam na informalidade, isto é, sem garantia dos direitos trabalhistas e previdenciários, compreendendo 38,4 milhões de pessoas.
O segundo aspecto é que, junto aos trabalhadores formais do setor privado, a exigência de uma idade mínima para a obtenção da aposentadoria não era generalizada. Ela estava prevista para o trabalhador urbano que comprovasse pelo menos 15 anos de contribuição, exigindo o mínimo de 65 anos para o homem e 60 anos para as mulheres; e para o trabalhador rural, concedida aos 60 anos para os homens e 55 anos para as mulheres, sem exigência de contribuição.
Em novembro de 2019, essa modalidade de aposentadoria compreendia 32,66% do número de benefícios emitidos junto à clientela urbana e, no caso da rural, quase a totalidade (6.509.226 de 7.009.434). Em relação aos urbanos, portanto, a maior parte das aposentadorias não era explicitamente regida pela idade, pois a introdução da idade mínima não foi aprovada quando da reforma de FHC.
Apesar disso, quando foi definida a fórmula do cálculo do valor da aposentadoria a ser aplicada a partir dessa reforma, a idade foi contemplada, constituindo ou não em um redutor, a depender do tempo de sobrevida esperada no momento da solicitação da aposentadoria. A fórmula que era aplicada era chamada de fator previdenciário.
Mais tarde, no governo Dilma Rousseff, foi introduzida a combinação entre tempo de contribuição e idade, o que poderia substituir o fator e era mais favorável aos trabalhadores que pudessem comprovar os quesitos solicitados nessa combinação. Já no setor público, dos funcionários federais, a idade foi incluída como um critério de acesso à aposentadoria desde 2003, com a reforma promovida por Lula.
Dessa maneira, a adoção da idade como critério de acesso esteve presente nas reformas realizadas, mobilizando as atenções em pelo menos vinte anos.
Bolsonaro radicaliza
A eleição de Jair Bolsonaro à presidência da República criou as condições políticas para que uma reforma mais radical fosse promovida. Basicamente, a nova versão aprovada definiu, para todos os trabalhadores do mercado formal (do setor público e do governo federal), que a idade mínima para ter acesso à aposentadoria é de 65 anos, se homem, e de 62 anos, se mulher. O tempo mínimo de contribuição passou de 15 para 20 anos, no caso de homem, permanecendo os 15 no caso da mulher; o cálculo do valor integral da aposentadoria, que antes era calculado levando em conta 80% dos salários mais altos que o trabalhador recebeu desde julho de 1994, foi alterado para todos os salários desde julho de 1994.
O valor da aposentadoria, que iniciava com 70% do benefício integral e incorporava 1% por ano de contribuição além do tempo mínimo, mudou para 60%, mais 2% a cada ano a mais de contribuição.
Em resumo, tanto as condições de acesso (idade e tempo de contribuição) como de obtenção do valor pleno do benefício tornaram-se mais duras, sendo previsível a existência de perdas para o conjunto dos trabalhadores, isto é, que estes em geral terão dificuldade de comprovar os requisitos necessários para se aposentarem com benefício pleno.
Projeta-se, para o futuro, portanto, queda no valor do benefício médio. Mas entre todos os trabalhadores, destacam-se como mais prejudicados as mulheres e aqueles localizados na base da pirâmide salarial, que não só são mais suscetíveis ao desemprego como, para fazer frente a ele, tendem a exercer atividades informais. O resultado disso será o aumento da exclusão da cobertura e da desigualdade, numa sociedade em que o nível de um e de outro já é extremamente elevado.
Impactos na vida real
Os impactos dessa reforma (na idade média das pessoas no momento da concessão da aposentadoria; no valor pago da aposentadoria; e nas contas do sistema de pensões dos trabalhadores do setor privado e no sistema de pensões dos funcionários públicos do governo federal) começarão a ter efeito no próximo ano e de forma gradual, dado que a implantação das novas condições contempla um período de transição.
Além disso, há que se considerar a existência de uma verdadeira corrida à aposentadoria, realizada por aqueles que, de uma forma ou de outra, tinham condições de se aposentar antes que a legislação se alterasse.
Grande parte das mudanças introduzidas pela reforma de Bolsonaro estavam contempladas na proposta de reforma de seu antecessor, Michel Temer. Este, no entanto, não conseguiu aprová-la dada a oposição manifestada por diferentes setores da sociedade, principalmente em 2017, quando foi realizada uma greve geral. A eleição de Bolsonaro, no entanto, implicou nova correlação de forças no Congresso Nacional e enfraqueceu a capacidade de reação dos setores contrários à reforma.
Mesmo assim, um aspecto da proposta de reforma de Bolsonaro não foi sequer apresentado no plenário da Câmara de Deputados para ser apreciado: a criação de um Fundo de Pensão que tivesse como horizonte substituir o regime de repartição vigente para os trabalhadores do setor privado da economia.
Nada impede, no entanto, que essa proposta seja reapresentada no futuro, caso os setores nela interessados sintam que tenham condições políticas para viabilizá-la. No curto prazo, não há possibilidade de isso acontecer. A instabilidade e incerteza que reina no país e no mundo, provocado ou não pelo avanço do coronavírus, inviabiliza qualquer arranjo nesse sentido.
Antecipação das aposentadorias
Um impacto da reforma previdenciária que não é, em geral, muito mencionado, é a corrida que provoca, entre os trabalhadores e servidores, para anteciparem a aposentadoria. Isso acontece sempre e, quanto maior a perda futura, maior a quantidade de trabalhadores que se mobilizam nessa iniciativa. Ao final de 2019, o governo federal contava com 607.833 servidores, 22.856 a menos do que em 2018. Essa foi a maior queda do número de servidores observada nos últimos 20 anos. Somente no Instituto Nacional do Seguro Social (INSS), houve perda de 4.645 servi – dores em 2019.
A entrada na inatividade dessa quantidade de servidores do INSS, por não ser acompanhada por uma política de abertura de concurso público, levou à formação de filas enormes no atendimento dos postos do INSS e ao atraso significativo na concessão de novos benefícios.
Para os servidores que não se aposentaram, lhes coube o aumento da carga de trabalho e a experiência de interagir com uma população a ponto de explodir, dado o descaso com que o governo tratou o atendimento nos postos do INSS e no trabalho interno de processamento das demandas por benefícios. Quando essa situação tomou as manchetes da mídia, o governo propôs, inicialmente, mobilizar militares para preencherem as necessidades de servidores do INSS, em caráter provisório. Ao final, mediante medida provisória publicada em 02/03/2020, foi regulamentada a contratação de militares da reserva e servidores aposentados, os quais devem começar suas atividades em abril. Segundo o presidente do INSS, Leonardo Rolim, em março, havia 1,883 milhão de benefícios na fila de concessão, entre benefícios previdenciários e assistenciais, e o tempo médio de concessão era de 80 dias, bem distante do prazo legal de 45 dias. Veremos se tal medida resolverá a situação das filas de atendimento e de concessão.
Mas para além do problema das filas, o que fica é a postura do governo em relação ao quadro de servidores. Este deve continuar a diminuir para que o objetivo de reduzir o gasto com servidores seja atingido e, ao mesmo tempo, para que seja adotada uma “nova forma de gestão”: no lugar de concurso, quando se fizer necessário, a contração por tempo determinado.
O SUS, Emenda Constitucional 25 e o Coronavírus
Não há dúvida que somente um sistema público e universal com capacidade de definir e orientar a tempo os cuidados de prevenção ao avanço do coronavírus, e de dispor das ações e serviços de saúde à altura do desafio da doença tem condições de fazer frente à ameaça que paira sobre todo o povo brasileiro.
O Brasil conta, para isso, com o Sistema Único de Saúde (SUS), única alternativa para mais de 70% da população, que não conta com planos e seguros de saúde e que não têm condições financeiras para acessar serviços particulares.
Apesar disso, o que constituiu uma “vantagem” em relação à maioria dos países, nos últimos anos, deixou de ser, particularmente desde a vigência da Emenda Constitucional 95 (que congela os gastos do governo federal por vinte anos). A situação financeira do Sistema tem se deteriorado, ameaçando a continuidade de programas que o consagraram até no plano internacional e fragilizando sua capacidade de atendimento. Mesmo assim, o SUS não foi totalmente desmantelado e nele estão mantidas as bases que lhe dão sustentação como um sistema público e universal. Entre esses fundamentos, salienta-se a formação humanista e solidária da maioria dos profissionais, que nele não permaneceriam se não fosse sua identidade com os princípios que organizam e sustentam o SUS.
O impacto do teto de gastos
Em pouco mais de três anos, qual foi o impacto da EC 95 sobre o financiamento do SUS? Foi transformar a situação de subfinanciamento em desfinanciamento. Apenas para lembrar, falava-se em subfinanciamento porque, em comparação com países com sistema iguais, isto é, públicos e universais, o Brasil sempre comprometeu ou dedicou recursos públicos, em termos de percentual do Produto Interno Bruto (PIB), correspondente à metade do esforço dos outros países.
Além disso, o Brasil constitui um caso único: um país em que a maior parte dos gastos em saúde é privada, embora tenha um sistema público universal de saúde. E o peso do setor privado no total do gasto não se alterou com a criação do SUS. Nas últimas três décadas, ele manteve-se relativamente estável, entre 55% a 60% dos gastos totais em saúde (OMS, 2018).
Qual foi a perda de recursos sofrida pelo SUS durante o tempo em que vige a EC 95? Quem nos responde a isso é Francisco Funcia, economista que integra a Comissão de Orçamento e Finanças (Cofin) do Conselho Nacional de Saúde. Segundo esse pesquisador, se for considerada a aplicação do governo federal no SUS pelo valor empenhado (critério adotado desde a vigência da EC 29/2000, que definiu a participação do governo federal no SUS e tomou outras providências), a perda de recursos ocorrida em 2019 pode ser apurada de duas formas, tal como mostra a Tabela 1 por ele elaborada.
Como diz Funcia: “se estivesse em vigor o piso de 15% da (receita Corrente Líquida (RCL), o valor empenhado em 2019 seria R$ 13,2 bilhões maior que o efetivamente aplicado; mas, se fosse adotado o mesmo percentual da RCL empenhado em 2017, o valor empenhado, em 2019, seria 20,2 bilhões maior que o efetivamente empenhado”. É importante registrar que o próprio governo, por meio da Secretaria do Tesouro Nacional, admite que houve redução de recursos para o SUS depois da implantação do novo regime fiscal introduzido pela EC 95.
Isso é importante de ser dito, pois os governos Temer e Bolsonaro não admitiam publicamente a possibilidade de a EC 95 provocar redução de recursos para a área de saúde. E mesmo ao ser admitida a perda, essa é subestimada, ficando em R$ 9,05 bilhões, bem distante dos 20,2 bilhões calculados por Funcia. Esse mesmo pesquisador estima que a perda de recursos do SUS, de 2018 a 2019, foi R$ 30,39 bilhões (R$ 10,18 bilhões em 2018).
Covid-19 e a área de saúde
Em 13 de março de 2020, quando o quadro do impacto da chegada do Covid-19 começou a se delinear, o governo federal, mediante Medida Provisória, abriu crédito extraordinário a favor dos Ministérios da Saúde e da Educação, no valor de R$ 5 bilhões, os quais devem ser alocados para o “enfrentamento da emergência de saúde pública de importância internacional decorrente do coronavírus”.
Esse valor, embora importante, está muito distante da perda de R$ 30,39 bilhões ocorrida no SUS depois da vigência da EC 95. Ao se valer do crédito extraordinário, o governo aumenta a disponibilidade de recursos para a área da saúde e, ao mesmo tempo, mantém o novo regime fiscal (EC 95).
O balanço dos efeitos do coronavírus na saúde e na economia brasileira, devido ao impacto interno no nível das atividades e à desaceleração da economia mundial, está ainda para ser feito. O que se sabe é que os setores mais desfavorecidos da população são os que menos têm condições de fazer presente ao covid-19, a começar pelos milhares de pessoas que vivem nas ruas das cidades, sem um teto para se abrigarem e exercerem a não socialização prevista como medida preventiva. O governo, em 17 de março, anunciou uma série de medidas, no valor de R$ 147,3 bilhões, com o intuito de contrarrestar ou minimizar o impacto da doença na economia. Parte desse valor, cerca de R$ 60 bilhões, precisarão ter aprovação do Congresso Nacional para serem utilizados.
Entre essas medidas, destacam-se a antecipação do pagamento da segunda parcela do décimo terceiro para pensionistas e aposentados (o anúncio da antecipação da primeira parcela foi feito na primeira quinzena de março); a ampliação dos beneficiários do Bolsa Família em 1,2 bilhão; o adiamento do pagamento do FGTS e do Simples, por parte das empresas, em 3 meses, entre várias outras medidas. Sua efetividade será testada ao longo dos próximos meses.
Emprego e tributos
Cabe aos setores comprometidos com os trabalhadores atuarem para que essas medidas sejam, de fato, levadas a termo e que outras a elas se somem. Entres essas, a defesa do emprego (para aqueles que o têm em meio da elevada taxa de desocupação que existe no país) faz-se necessária, pois não foi encaminhada pelo governo nenhuma ação ou medida nesse sentido. Postergar o pagamento de alguns tributos por parte dos empresários não garante que eles não demitam trabalhadores em função da diminuição do nível de atividade, principalmente daqueles que, em outra situação mais favorável, serão rapidamente encontrados no mercado de trabalho, posto que não têm muita qualificação. Além disso, não há, entre as medidas anunciadas pelo governo, nenhuma ação com relação aos desempregados e aos trabalhadores do mercado informal, sendo que, esses últimos, constituem 41% da força de trabalho ocupada no país.