O celular da Marielle não parava nunca. Era o número dela que indicavam quando mais uma mãe perdia um filho, vítima da violência do Estado. Ela sempre respondia, explicando como a Comissão de Direitos Humanos (CDH) da Alerj (Assembleia Legislativa do Estado do Rio de Janeiro) poderia ajudar. Como vereadora, colocava o gabinete à disposição – ou encaminhava para outros órgãos, como a Defensoria Pública ou a própria CDH. Acabava quase sempre entrando junto com a família na luta por justiça. Não importava quem eram as vítimas.
Quando a garota Maria Eduarda morreu dentro do colégio, em 2017, Marielle recebeu a mãe dela na Câmara dos Vereadores. Quando a polícia matou Johnatha de Oliveira Lima, Marielle conversou com Ana Paula Oliveira, mãe dele, e, com carinho, abriu as portas da CDH. Quando Amarildo sumiu num camburão da polícia pacificadora, Marielle fez coro junto à família – nas ruas e na CDH – na cobrança por resposta. Quando o policial militar Eduardo Oliveira tomou um tiro pelas costas do próprio colega de farda, lá estava Marielle outra vez ao lado da mãe.
Não importava o cargo que ocupava ou a casa parlamentar onde trabalhava. Fosse no papel de vereadora, ou de coordenadora da Comissão, Marielle acolhia as famílias que a procuravam. Outras vezes era ela quem os procurava. Sempre com empatia. Marielle sabia o nome de quase toda a família dos casos que acompanhou mais de perto, lembrava dos aniversários, mandava mensagem ou ligava nos dias mais difíceis. E, claro, articulava atos e pensava em estratégias para dar visibilidade às injustiças e cobrar os órgãos públicos. Os mais de 46 mil votos que a elegeram para legislar no município do Rio de Janeiro não vieram à toa – ainda que uma votação assim, tão expressiva, tenha surpreendido a mim e a todes, inclusive a ela. Marielle já era, muito antes de ser eleita vereadora oficialmente, referência na defesa de direitos humanos na cidade do Rio.
A agenda dela também não parava, principalmente nos primeiros meses como vereadora. Era tanta vontade de fazer a diferença que nem passava pela cabeça dela determinar um teto de horário. Quem fez isso por ela – por nós – fui eu. Fizemos um acordo para encerrar as agendas às 21 horas durante a semana e deixar os domingos livres, para podermos aproveitar juntas, viver nosso amor. Ela concordou. Se visse a minha agenda hoje… Ah, ela daria risada da minha cara.
Ainda que o tempo fosse mais curto para gente do que eu gostaria, era bonito acompanhar o trabalho dela e da mandata. Dava orgulho vê-la pegar o microfone no plenário para defender suas ideias e seu lugar – a favela, o feminismo, a negritude, as vidas LGBTQIAP+ –, naquele ambiente tão inóspito a mulheres, principalmente às mulheres negras. E me enchia de orgulho ver a disposição que ela tinha para mudar o Rio de Janeiro, transformar a Câmara dos Vereadores, com um trabalho sério e comprometido.
Em um ano de mandato, Marielle protocolou 13 projetos de leis e atendeu 35 pessoas no gabinete. Algumas batalhas ela perdeu. Numa dessas, chorou escondida depois de perder a votação para colocar o Dia da Visibilidade Lésbica no calendário oficial do Rio de Janeiro, sessão marcada por um show de horrores de misoginia e lesbofobia no plenário. Outras ela não teve tempo de enfrentar. Projetos de lei importantes, como a criação de mais casas de parto na cidade e de espaços infantis noturnos, só entraram na pauta depois de sua morte. Todos foram aprovados, embora nenhum deles tenha sido de fato implementado.
Assim que assumiu a Presidência da Comissão da Mulher, ela mudou o papel daquele lugar. Até então, era um espaço subutilizado, comandado por mulheres de direita. Não havia quase nenhuma movimentação, apenas pouquíssimas reuniões meramente protocolares. Com Marielle não era assim: fazia religiosamente reuniões semanais. E não faltava pauta. Apresentava projetos de políticas públicas para mulheres desenvolvidos pela mandata, relatava as visitas a maternidades e os atendimentos de mulheres vítimas de violência no gabinete, organizava audiências públicas. A Comissão voltou ao mesmo marasmo em 2018, depois do 14 de março.
Não mataram só a minha companheira naquela noite – ainda que essa, obviamente, seja a parte que mais me dói. Mataram a parlamentar que acreditava e trabalhava por mudanças, que não se contentava só em ter escapado das estatísticas das mulheres negras e faveladas, que queria mais: queria puxar todo mundo com ela, ampliar as oportunidades. Mataram a esperança de tanta gente que acreditou naquele projeto. E, de quebra, acertaram a democracia com um crime descaradamente político, num período de intervenção militar – cujo interventor, o General Walter Braga Netto, hoje aparece como virtual pré-candidato a vice-presidente da chapa de Jair Bolsonaro à Presidência.
Era uma amostra dura do que viria depois. Ainda que faltassem provas, Lula foi preso com base nas “convicções” do juiz Sérgio Moro. Bolsonaro e seus aliados saíram do esgoto para vencer uma eleição em cima de discursos fascistas, sem debate político, sustentada em injúrias, ódio e notícias falsas. A violência política virou lugar comum, obrigou Jean Wyllys a renunciar ao mandato, Taliria Petrone a sair de sua cidade e andar com escolta – outras mulheres do PSOL passam pela mesma agonia, com ameaças de morte recorrentes – e me obrigou a ter uma medida cautelar exigida pela Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) da Organização dos Estados Americanos (OEA).
Minha vida desmoronou de um jeito tão doloroso quanto a nossa democracia – com o agravante do inesperado, ao contrário da nossa frágil e jovem democracia, que morre aos poucos desde o Golpe de 2016. Tiraram de nós os planos da festa de casamento, o sonho de viver um longo amor sem interrupções, os prazeres da vida. Não sobrou outra opção a não ser substituir a dor por cobrança, por trabalho. Ou eu lutava, ou me entregava – e isso nem Marielle nem minhas crenças religiosas perdoariam.
Sigo na luta atrás do sonho compartilhado com Marielle: viver num Brasil mais igual, onde as pessoas possam amar livremente, viver sem medo ou fome. Esse ano de eleição traz uma nova esperança, temos a chance de derrotar Bolsonaro e o bolsonarismo nas urnas. É o primeiro passo para resgatar nossa democracia. Mas ela só será plena mesmo quando derem a resposta que esperamos há mais de quatro anos: quem mandou matar Marielle?
Por Mônica Benício