Silvio Luiz de Almeida
O ponto de partida para a compreensão do problema racial é entender que a ideia de “raça” é uma construção política e que tem um papel determinante nos processos de reprodução social. Isso significa dizer que, em uma sociedade em que as condições econômicas e os espaços de decisão política são estruturados pela desigualdade, a raça, ou mais precisamente, o processo sistêmico de discriminação racial a que chamamos de “racismo”, é um fator historicamente intrínseco à sociabilidade capitalista.
Nesse sentido, o racismo confere sentido às desigualdades que constituem a sociedade capitalista, sendo-lhe não uma anomalia, mas um dos modos de regulação mais importantes. São imprescindíveis às sociedades mecanismos institucionais de controle e estabilização capazes de estabelecer normas e impô-las mediante o uso da força quando necessário. A grande questão é que aquilo que aqui chamamos de regulação não envolve apenas regras explícitas ou de natureza jurídica. A noção de regulação contempla regras “ocultas”, “não escritas”, ilegais por vezes, mas que são, no mínimo toleradas, visto que sua existência é importante para a manutenção de determinada ordem social, por mais desigual e até injusta que está possa parecer. O apartheid sul-africano, a segregação racial nos EUA, o racismo científico na República Velha e, depois, a ideia de democracia racial no Brasil são exemplos de como a formação dos sistemas políticos e econômicos dos mencionados países não podem ser entendidos sem o racismo de Estado.
Por esse motivo é que afirmamos que qualquer programa ou estratégia política de superação dos problemas nacionais envolve uma inadiável reflexão que parta de duas afirmações sobre a questão racial:
a) o racismo não se resume ao problema da “raça”
b) a economia política é também uma questão de identidade e de cultura.
O racismo não se resume ao problema da raça
O racismo, enquanto processo, opera nos campos subjetivo e objetivo. No campo subjetivo, o racismo se configura como ideologia, que não se entende aqui como forma de ocultação ou desvio da realidade, mas como o sentido com que as práticas materiais chegam à consciência. A cor da pele não é a raça; a raça é o sentido socialmente atribuído à cor da pele. Portanto, não é automática a associação entre “pele escura” e “pobreza”; é preciso que mecanismos ou “aparelhos” (meios de comunicação, escolas, associações religiosas) criem socialmente o “negro” e o “branco”, ou em outros termos, criem a ligação “natural” e até inconsciente entre determinadas características biológicas e/ou culturais e privilégios ou desvantagens sociais.
A clivagem racial ganha concretude e se reproduz por meio das instituições. O racismo é institucional na medida em que só organizações são capazes de conter fatores de poder que sustentem a desigualdade racial em nível sistêmico. E o Estado é a principal delas. Como a forma política da sociedade capitalista, cabe ao Estado manter a coesão de uma sociedade marcada por conflitos e antagonismos que lhe são inerentes: uma sociedade de indivíduos, que se dividem em classes, essas classes em grupos nacionais, raciais, sexuais etc. O racismo, tal como o sexismo, “normaliza” o fato de que algumas pessoas ganharão menos, serão mais exploradas, não serão ouvidas ou representadas nos espaços de decisão ou, ainda, que suas mortes não causarão qualquer tipo de comoção. Por isso, a questão do racismo vai além do problema da raça: é uma questão de economia política.
A economia política é uma questão de identidade. Com efeito, não se pode negar que há uma economia política do racismo. Tomando-se como exemplo a história do Brasil, nota-se que os “intérpretes do Brasil”, inclusive os conservadores e reacionários, sempre tiveram a questão racial como um dado referencial. Autores do século XIX como Nina Rodrigues, Silvio Romero e Alberto Torres, ainda que de modo distinto, colocaram a questão do negro como uma discussão urgente do debate nacional. O mesmo se passou com os ensaístas dos anos XX com destaque para Oliveira Vianna que inseriram a raça no centro do debate sobre a formação do Estado e a inserção da sociedade brasileira no capitalismo mundial. Já nos anos 30, temos a referência máxima de Gilberto Freyre. Sobre este autor é importante que se diga que resumir suas ideias à “democracia racial” só serve para simplificar uma obra que, sem negar o racismo nela contido, tem propósitos políticos e econômicos muito mais sofisticados.
O que Freyre propõe em sua vasta obra é uma conciliação entre a burguesia agrária e a nova burguesia industrial que se formava a partir da relação entre “o moderno e o rústico”, que serviria para alertar sobre os perigos de reformas sociais profundas que, sob o pretexto da “modernização”, poderiam comprometer a “democracia racial” já existente. O que se quer evidenciar aqui com o exemplo brasileiro é que o racismo brasileiro não é o resultado de um bando de ignorantes e irracionais, mas sim, uma construção ideológica e de prolongamentos institucionais que até hoje nos conduzem.
A pobreza, a violência e a aparente falta de alternativas para superar estas condições encontram forte apoio em uma sociedade que se “acostumou” a ver negros afundando na miséria ou no próprio sangue sem sequer levantar a sobrancelha. Uma sociedade racista não pode lutar contra uma reforma trabalhista que atingirá principalmente pessoas que nunca se parecem com um professor universitário, um advogado, um médico, um juiz, um promotor, um empresário ou um líder político. A terceirizada não é a pessoa que senta à mesa ou que dá ordens e nem com esta se parece; a terceirizada é, em geral, a pessoa negra, a “tia da limpeza ou do café”, o tipo da pessoa para quem fazer mal não tem consequências. É a mesma mulher negra que quando tem seu filho adolescente assassinado pela polícia fica ajoelhada sobre o corpo com a carteira de trabalho do morto para provar que ele “não era bandido” e que “não merecia morrer”.
Só o racismo nos permite constatar com normalidade que a cada 23 minutos um jovem negro é assassinado no Brasil, segundo o Mapa da Violência de 2014. Não há como mobilizar as pessoas contra uma reforma da Previdência que fulminará quem ganha baixos salários, trabalha a maior parte da vida na informalidade, é mulher e muitas vezes tem a vida tão degradada que não passa dos 60 anos. E a grande maioria dessas pessoas é negra. Só em uma sociedade racista uma emenda constitucional como a 95/2016 que limita gastos públicos nos próximos 20 anos, o que atingirá serviços públicos essenciais como saúde e educação é aprovada sem um debate amplo, pois o racismo é um impeditivo da construção de qualquer processo democrático.
Qualquer projeto realmente transformador no Brasil, especialmente um projeto de cunho socialista, terá que contemplar prioritariamente a questão racial. Não se trata de “identitarismo” ou transigências com a pós- -modernidade, discurso que tem sido repercutido até por pessoas “progressistas” que, mais atravessadas pelo racismo mais do que são capazes de reconhecer (o racismo como ideologia se manifesta no inconsciente), não compreendem que tal como a economia e a política, o processo de constituição da subjetividade é estrutural.
Não se espere que um jovem negro, cuja preocupação central é não tomar um tiro nas costas, engaje-se na construção de uma “pauta” progressista que não trate a sua vida e o seu futuro como algo fundamental. Não existe possibilidade de construção, seja de um projeto nacional, seja de socialismo ou de liberdade, se as determinações da realidade racial não estiverem na ordem do dia e no horizonte dos que pensam a conjuntura social. É necessário conquistar corações e mentes para mobilizar as energias sociais que nos impulsionem para uma verdadeira transformação. No caso de uma sociedade racista como a brasileira, mais do que conquistar corações e mentes, a tarefa é preservar os corpos. Como escreveu Florestan Fernandes em O significado do protesto negro, “a raça se configura como pólvora do paiol, o fator que em um contexto de confrontação poderá levar muito mais longe o radicalismo inerente à classe”.