Rio Grande do Sul: do desmonte ambiental à tragédia

Por Luciana Genro*

As enchentes que devastaram o Rio Grande do Sul em 2024 foram precedidas por um desmonte do sistema de fiscalização e proteção ambiental, que afrouxou legislações, cooptou órgãos reguladores, extinguiu estruturas públicas, transferiu responsabilidades à iniciativa privada e asfixiou o corpo técnico do serviço público. Em pleno contexto de agravamento da crise climática, essa política antiambiental, feita sob medida para atender aos interesses do agronegócio e das monoculturas de soja e eucalipto dominantes no estado, segue inalterada sete meses após a tragédia. 

As consequências desse modelo econômico resultam na destruição do Pampa, bioma sul-americano que, no Brasil, existe apenas no Rio Grande do Sul e cuja biodiversidade vem sendo esmagada pelo avanço das monoculturas. Um estudo do MapBiomas revela que, entre 1985 e 2022, o Pampa brasileiro perdeu 2,9 milhões de hectares de sua vegetação (32% da área existente).

É importante lançar luzes sobre os retrocessos ambientais do último período para compreender como as enchentes de 2024 atingiram um estado sem capacidade de prevenção e reação. Já em 2015, ao assumir o governo, José Ivo Sartori (MDB) pôs em prática um projeto de desmonte do estado, extinguindo diversos órgãos públicos, como a Fundação Zoobotânica (FZB). Dentre as responsabilidades da FZB, destaca-se a publicação da lista de espécies ameaçadas de extinção no Rio Grande do Sul, a qual foi feita pela última vez em 2014: desde então, o estado vive um apagão na área.

A Secretaria Estadual do Meio Ambiente (Sema), criada há 25 anos, foi fundida com a pasta da Infraestrutura no início do governo Leite e totalmente desestruturada. Faltam servidores, há omissão no cumprimento de funções – como as validações do Cadastro Ambiental Rural (CAR) -, além de um grave sufocamento da área técnica. Responsável por gerir as 23 unidades de conservação ambiental, a Sema possui apenas 51 guardas-parque, fazendo com que cada um seja responsável por mais de 5 mil hectares de área. 

Vinculado à Sema, o Conselho Estadual do Meio Ambiente (Consema) foi cooptado, com a representação destinada ao corpo técnico da Secretaria apropriada por cargos comissionados do governo. Com 32 assentos, a maioria de conselheiros do órgão é indicada pelo governo, por corporações empresariais e entidades ligadas ao agronegócio. O biólogo Paulo Brack, 1º suplente de vereador pelo PSOL em Porto Alegre, atua há quase 20 anos no Consema e já viu diversas medidas contrárias à preservação ambiental passando pelo órgão. Em 2019, ele solicitou que o Conselho discutisse as 480 alterações no Código Estadual do Meio Ambiente que o governo estava propondo, mas a maioria do grupo, de modo espantoso, disse que não era assunto para o órgão.

Essas mudanças, que devastaram o Código Estadual de Meio Ambiente (CEMA), foram aprovadas em regime de urgência pela Assembleia Legislativa. Uma das principais alterações impostas pelo governo foi a criação da Licença Ambiental por Compromisso (LAC), em que empreendimentos são aprovados de forma expressa e somente depois são fiscalizados. Os professores Gonçalo Ferraz e Fernando Becker, do Instituto de Biociências da UFRGS, realizaram um detalhado estudo de todas as mudanças e concluíram que:parecem seguir três princípios: eliminar, enfraquecer, e subverter: “ Desapareceram todos os artigos sobre áreas de uso especial, que não sendo unidades de conservação precisam ser definidas e protegidas. Desaparecem as diretrizes técnicas para elaboração de estudos e relatórios de impacto ambiental, assim como as ferramentas e mecanismos de controle da qualidade do ar”..

Em junho de 2021, o governo Leite aprovou um projeto de lei que liberou o uso de agrotóxicos proibidos na Europa e nos EUA, onde são fabricados, transformando o Rio Grande do Sul em lata de lixo para produtos venenosos banidos no exterior. . Um mês depois, outro ataque foi aprovado: uma PEC autorizando a concessão das unidades de conservação ambiental à iniciativa privada. No primeiro turno, o meu voto foi o único contrário entre todos os deputados. Três anos depois, algumas dessas unidades já foram concedidas, sem respeito a seus planos de manejo, nem escuta aos técnicos da Sema. 

Após a tragédia das enchentes, as bancadas de oposição na Assembleia Legislativa apresentaram um conjunto de projetos para revogar os retrocessos ambientais do último período. O “revogaço” propõe a volta da FZB, o fim da liberação de agrotóxicos proibidos em seus países de origem, a anulação do desmonte do Código Estadual do Meio Ambiente e a proibição de barragens e açudes em Áreas de Preservação Permanentes (APPs). Os projetos criam um Plano Estadual de Mudanças Climáticas, o Instituto das Águas do RS e declaram o Pampa como Patrimônio Natural Estadual. A bancada do PSOL, composta por mim e pelo deputado Matheus Gomes, está na linha de frente desta luta. Além disso, também apresentei a PEC da Resiliência Climática, que prevê a aplicação de 1% da receita líquida do estado em prevenção a desastres ambientais.

Infelizmente, sete meses depois das enchentes de maio, a história se repete e praticamente nada mudou. No início de dezembro de 2024, um novo temporal voltou a alagar diversas regiões de Porto Alegre e mais de 60 municípios foram impactados, com mais de 400 mil pessoas sem luz. Um mês antes, a Assembleia Legislativa aprovou o orçamento para 2025 – com nosso voto contrário – com recursos insuficientes diante dos desafios da crise climática. 

Mais do que um debate sobre cifras, é a compreensão política que precisa mudar no sentido de se entender que vivemos uma emergência climática permanente, fruto de um sistema capitalista que busca a expansão de suas atividades e o lucro a qualquer custo. No processo de reprodução desse sistema injusto e destrutivo, a devastação do meio ambiente não como consequência, mas necessidade para sua existência. Políticos vestindo o colete laranja da Defesa Civil nos momentos de desastres naturais, como fazem Leite e Melo, acabam sendo a encenação teatral da gestão de uma crise cujas raízes eles ajudam a cultivar. Se não existe planeta B, agir de modo a mitigar os danos, diminuir os riscos, e trabalhar para mudar efetivamente o sistema gerador dessa catástrofe é urgente.

*Deputada estadual pelo PSOL no Rio Grande do Sul, é presidente da Fundação Lauro Campos e Marielle Franco.

**Texto publicado na edição 3 da revista Jatobá.

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