Michael Löwy
Em janeiro de 1919, Rosa Luxemburgo, fundadora do Partido Comunista Alemão (Liga Espartaquista) foi assassinada por uma unidade de Freikorps, grupos de oficiais e militares contrarrevolucionários embriões do partido nazista trazidos a Berlim pelo ministro social democrata Gustav Noske. O objetivo era esmagar a revolta espartaquista.
Ela foi, portanto, como Emiliano Zapata, assassinado naquele mesmo ano, uma “derrotada da História”. Mas sua mensagem permaneceu viva naquilo que Walter Benjamin chamou de “a tradição dos oprimidos”; uma mensagem ao mesmo tempo, e inseparavelmente, marxista, revolucionária e humanista. Seja na crítica ao capitalismo como sistema desumano, no combate ao militarismo, ao colonialismo e ao imperialismo; ou na visão de uma sociedade emancipada, a utopia de um mundo sem exploração, sem alienação e sem fronteiras; esse humanismo comunista atravessa, como um fio condutor, o conjunto dos escritos políticos e também a correspondência e as comoventes cartas da prisão, que foram lidas e relidas por sucessivas gerações de jovens militantes do movimento operário.
Três temas de sua obra me parecem particularmente importantes, na perspectiva de uma refundação do comunismo no século XXI: o internacionalismo, a concepção “aberta” de História e a importância da democracia no processo revolucionário.
O internacionalismo
Em uma época de globalização capitalista, de mundialização neoliberal, de dominação planetária do grande capital financeiro, de internacionalização da economia a serviço do lucro, de especulação e acumulação; a necessidade de uma resposta internacional, de uma globalização da resistência, em suma, de um novo internacionalismo, está mais do que nunca na ordem do dia. Entretanto, poucas figuras do movimento operário encarnaram, tão radicalmente quanto Rosa Luxemburgo, a ideia internacionalista, o imperativo categórico de unidade, de associação, cooperação e fraternidade entre explorados e oprimidos de todos os países e continentes.
Adversária inconciliável dos projetos belicistas do Império Germânico, ela nunca deixou de denunciar o militarismo e a corrida armamentista. É por isso que irá se opor a barganhas suspeitas com o governo do Kaiser por parte de revisionistas da direita social-democrata, como Wolfgang Heine e Max Schippel. Alguns exemplos são: a votação dos créditos de guerra, pelo Parlamento alemão em 1914, em troca de medidas sociais, sua oposição ao militarismo (reforço à frota naval) como nova fonte de emprego para os trabalhadores, etc. Ela recusa essas pseudovantagens em troca do reforço da força militar que será, mais cedo ou mais tarde, aplicada contra outros povos, seja na Europa, seja nas colônias, ou ainda contra os próprios trabalhadores alemães.
Como sabemos, Rosa foi, juntamente com Karl Liebkencht, uma das raras dirigentes do socialismo alemão e europeu a se opor à União Sagrada e à votação dos créditos de guerra em 1914. As autoridades imperiais alemãs, com o apoio da dreita social-democrata, fizeram-na pagar caro pela oposição internacionalista à guerra, colocando-a atrás das grades durante a maior parte do conflito (1914-18). Em 1916, ela resumirá o principal ponto de vista: “A pátria do proletariado, cuja defesa deve a tudo proceder, é a Internacional Socialista”.
Diante do dramático fracasso da II Internacional, Rosa estava pronta para se juntar a outros marxistas com o objetivo de criar uma nova Internacional. Ela sonhava com o advento de uma nova associação mundial de trabalhadores e somente a morte a impediu de participar, juntamente com revolucionários russos, da fundação da Internacional Comunista, em 1919.
Rosa Luxemburgo foi uma das poucas pessoas a entender o perigo mortal que representava para os trabalhadores o nacionalismo, o chauvinismo, o racismo, a xenofobia, o militarismo e o expansionismo colonial ou imperial. A tarefa imediata do socialismo, escreveu ela em seu documento Espartaquista de 1916, “será a libertação intelectual do proletariado da dominação da burguesia, manifestada na influência da ideologia nacionalista”. O que ela entendia por “nacionalismo” não era a cultura nacional de diferentes povos, mas a ideologia que faz da “Nação” o valor político e moral supremo, ao qual tudo deve ser subordinado (“Deutschland über alles”, “Alemanha acima de tudo”).
Concordemos ou não com as teses a respeito da questão nacional, não podemos questionar a força profética dos escritos. Utilizo o termo “profético” no sentido bíblico original (tão bem definido por Daniel Bensaïd): não aquele que alega “prever o futuro”, mas o que enuncia uma antecipação condicional, aquele que adverte o povo das catástrofes que virão se não tomarmos outro rumo.
Ainda no mesmo documento de 1916, Rosa Luxemburgo fez um alerta: haveria sempre novas guerras enquanto o capitalismo e o imperialismo continuassem a existir: “A paz mundial não pode ser assegurada por planos utópicos ou essencialmente reacionários, como cortes internacionais de arbitragem compostas por diplomatas capitalistas, acordos que dizem respeito ao ‘desarmamento’, (…) uma ‘Federação Europeia’, ‘uma união aduaneira na Europa central’, (…) e assim por diante. O imperialismo, o militarismo e as guerras não serão abolidos enquanto o poder da classe capitalista permanecer incontestado”.
Suas intuições se mostraram, assim, proféticas, uma vez que os piores crimes do século XX da I a II Guerra Mundial (Aushwitz, Hiroshima) em diante foram cometidos em nome do nacionalismo, da hegemonia nacional, da “defesa nacional”, do “espaço vital nacional” e por aí vai. O próprio stalinismo é produto de uma degeneração nacionalista do Estado Soviético, materializada na palavra de ordem “Socialismo em um só país”.
Podemos criticar algumas de suas posições relacionadas às reivindicações nacionais ao contrário de Lenin, ela se opôs ao direito de autodeterminação das nações e propôs, em vez disso, uma forma de “autonomia nacional” – mas Rosa percebeu claramente os perigos das políticas estatais nacionais: conflitos territoriais, “purificações étnicas” e opressão às minorias. Ela não pôde prever os genocídios.
Uma concepção aberta da História
Em segundo lugar, após um século que foi não apenas um dos mais “extremos” (Eric Hobsbawm), mas também repleto das manifestações mais brutais de barbárie na história da humanidade, não podemos senão admirar um pensamento revolucionário como o de Rosa Luxemburgo, que soube recusar a ideologia cômoda e conformista do progresso linear, o fatalismo otimista e o evolucionismo passivo da social-democracia, a ilusão perigosa sobre a qual fala Walter Benjamin em suas Teses de 1940 de que seria suficiente “ir a favor da corrente” e deixar as “condições objetivas” acontecerem. Ao escrever, em sua brochura A crise da social democracia de 1915 (assinada sob o pseudônimo “Junius”), a palavra de ordem “Socialismo ou barbárie”, Rosa Luxemburgo rompeu com a concepção de origem burguesa, mas adotada pela II Internacional da História como progresso irrefutável, inevitável, “garantido” pelas leis “objetivas” do desenvolvimento econômico ou da evolução social. Uma concepção muito bem resumida por Gyorgy Valentinovitch Plekhanov, que escreveu: “A vitória de nosso programa é tão inevitável quanto ao nascer do sol amanhã”. A conclusão política dessa ideologia “progressista” não poderia ser outra coisa senão a passividade: ninguém teria a insana ideia de lutar, arriscar a vida e combater para garantir o sol da manhã.
Voltemos por um instante ao significado político e “filosófico” da palavra de ordem “Socialismo ou barbárie”. Ela é sugerida em alguns textos de Marx ou Engels, mas é Rosa Luxemburgo quem lhe dá essa formulação explícita e definida: sugerindo uma percepção da História como um processo aberto, como uma série de “bifurcações”, na qual o “fator subjetivo” consciência, organização e iniciativa dos oprimidos se torna decisivo. Não é mais questão de esperar que a fruta “amadureça”, conforme as “leis naturais” da economia ou da História, mas de agir antes que seja tarde demais. Pois a alternativa implica um perigo aterrador: a barbárie. Com esse termo, Rosa Luxemburgo não se refere a uma “regressão” impossível a um passado tribal, primitivo ou “selvagem”. Trata-se, a seu ver, de uma barbárie eminentemente moderna, da qual a I Guerra Mundial serviu de exemplo impressionante, muito pior em sua desumanidade assassina do que as práticas guerreiras de conquistadores “bárbaros” ao fim do Império Romano. Jamais, no passado, tecnologias tão modernas tanques, gás e aviação militar haviam sido postas a serviço de uma política imperialista de massacre e de agressão em tamanha escala.
Do ponto de vista da História do século XX, a palavra de ordem de Rosa Luxemburgo também se revelou visionária: a derrota do socialismo na Alemanha pavimentou o caminho para a vitória do fascismo hitlerista e, em seguida, para a II Guerra Mundial, e as formas mais monstruosas de barbárie moderna que a humanidade jamais conheceu, das quais o nome “Auschwitz” se tornou símbolo e resumo.
A escolha indicada pela máxima de Rosa Luxemburgo continua a ser a ordem do dia em nossa época. O longo período de recuo das forças revolucionárias do qual começamos pouco a pouco a sair foi acompanhado pela multiplicação de guerras e massacres de “purificação étnica”, desde os Balcãs até à África, pela ascensão de racismos, de chauvinismos e de fundamentalismos de todo tipo, inclusive no coração da Europa “civilizada”.
Mas um novo perigo se apresenta, não previsto por Rosa Luxemburgo. Ernest Mandel enfatizou nos escritos finais que a escolha do século XXI para a humanidade não é mais como em 1915, “socialismo ou barbárie”, mas “o socialismo ou a morte”. Ele se referia ao risco de catástrofe ecológica resultante da expansão capitalista mundial, com a lógica destrutiva do meio ambiente. Se o socialismo não conseguir interromper essa corrida vertiginosa ao abismo da qual o aumento da temperatura planetária e a destruição da camada de ozônio são os sinais mais visíveis é a própria sobrevivência da espécie humana que estará ameaçada.
A democracia no socialismo
Em terceiro lugar, frente à falha histórica das correntes dominantes do movimento operário, ou seja, por um lado, o colapso inglório do suposto “socialismo real” legado de sessenta anos de stalinismo e, por outro, a submissão passiva (ou seria uma adesão ativa?) da social-democracia às regras neoliberais do jogo capitalista mundial, a alternativa que apresentava Rosa Luxemburgo, isto é, um socialismo de uma só vez autenticamente revolucionário e radicalmente democrático, nunca pareceu tão pertinente. Como militante do movimento operário do Império Czarista – ela havia fundado o Partido Social-democrata da Polônia e da Lituânia, afiliado ao Partido Operário Social-democrata Russo Rosa criticara as tendências, em sua opinião, por demais autoritárias e centralistas, das teses defendidas por Lenin antes de 1905. Sua crítica coincidiu, nesse ponto, com aquela do jovem Trotsky em Nossas tarefas políticas (1904). Ao mesmo tempo, como dirigente da ala esquerda da social-democracia alemã, ela lutava contra a tendência da burocracia sindical e política, ou das representações parlamentares, de monopolizar as decisões políticas. A greve geral russa de 1905 lhe pareceu um exemplo a se seguir também na Alemanha: ela confiou mais na iniciativa das bases operárias do que nas pertinentes decisões dos órgãos dirigentes do movimento operário alemão. Tomando conhecimento, ainda na prisão, dos acontecimentos de outubro de 1917, ela rapidamente se solidariza com os revolucionários russos. Em um folheto sobre a Revolução Russa, redigido no cárcere em 1918, que só seria publicado em 1921, após a morte; ela saúda com entusiasmo esse grande ato histórico emancipatório e presta uma homenagem calorosa aos dirigentes revolucionários de outubro: Toda a coragem, a energia, a perspicácia revolucionária, a lógica que um partido revolucionário pode demonstrar em um momento histórico foram trabalho de Lenin, de Trotsky e de seus amigos. Toda a capacidade de ação e honra revolucionárias que faltaram à social-democracia ocidental são encontradas entre os bolcheviques. A insurreição de outubro não só terá servido para efetivamente salvar a Revolução Russa, mas também a honra do socialismo internacional”.
Tal solidariedade não a impede de criticar aquilo que lhe parece errado ou perigoso na política dos bolcheviques. Embora algumas de suas críticas – sobre autodeterminação nacional ou a distribuição de terras sejam questionáveis e irrealistas, outras, no que diz respeito à questão da democracia, são muito relevantes e de uma atualidade notável. Ciente da impossibilidade, para os bolcheviques, dentro das circunstâncias dramáticas da guerra civil e da intervenção estrangeira, de criar “magicamente, a mais bela das democracias”, Rosa Luxemburgo chama menos atenção para o perigo de uma certa mudança autoritária e reafirma princípios fundamentais da democracia revolucionária:
“A liberdade apenas para os apoiadores do governo, apenas para membros de um partido sejam eles quantos forem isso não é liberdade. Liberdade é sempre, pelo menos, a liberdade de quem pensa diferente. Sem eleições gerais, sem liberdade de imprensa e de reunião ilimitada, sem disputa de ideias, a vida se esvai em todas as instituições públicas, vegeta, e a burocracia permanece como o único elemento ativo”.
É difícil não reconhecer a força desse argumento. Alguns anos mais tarde, a burocracia tomou todo o poder, eliminando progressivamente os revolucionários de outubro de 1917 esperando para, ao longo dos anos 1930, exterminá-los sem piedade.
Outra forma de conceber o passado e o presente
Ao chamar atenção para esses textos, não queremos apenas tirar do esquecimento um capítulo desconhecido da obra de Rosa Luxemburgo. Parece-nos que os escritos contêm muito mais do que um vislumbre de história econômica. Eles sugerem outra forma de conceber o passado e o presente, a historicidade social, o progresso e a modernidade. Ao confrontar a civilização industrial capitalista com o passado comunitário da humanidade, Rosa Luxemburgo rompe com o evolucionismo linear, o “progressismo” positivista, o darwinismo social e todas as interpretações do marxismo que o reduzem a uma versão mais avançada da filosofia de Monsieur Homais. A base desses textos é, em última análise, o próprio significado da concepção marxista de História.
Os escritos de Rosa Luxemburgo têm adquirido renovada importância, quando vemos, em diversas regiões do mundo e mais particularmente na América Latina México, Equador, Bolívia, Peru, entre outros a luta de comunidades camponesas e indígenas, as tradições pré-capitalistas ainda vivas, em defesa de suas florestas, de suas terras e rios, contra as multinacionais petrolíferas e mineradoras, o agronegócio capitalista e as políticas neoliberais dos governos, responsáveis por desastres sociais e ecológicos cada vez mais graves.