“Se a vitória não foi fácil, será difícil consolidar nossa vitória e construir a nova sociedade, a nova convivência social, a nova moral e a nova pátria”, disse Salvador Allende na noite de sua vitória. Ninguém poderia prever que a vitória presidencial da Unidade Popular em 4 de setembro de 1970 seria o ponto de virada de uma transformação revolucionária não em seu sentido socialista, mas em seu mais alto significado histórico e democrático.
E aqui estamos agora, 52 anos depois. Em 4 de setembro de 2022, um plebiscito deve aprovar ou rejeitar a nova constituição política (499 artigos), concluída no mês de maio pela primeira assembleia constituinte realizada no Chile, paritária e com participação dos povos originários. O plebiscito de saída, como é chamado, pode selar um longo ciclo nacional e abrir uma nova etapa.
Mas, várias pesquisas mostram um declínio no apoio à Assembleia Constituinte que tem tido dificuldades flagrantes de comunicação com o público nestes meses. Se a nova constituição for rejeitada, poderia se prolongar a instabilidade política desencadeada pelo colapso da constituição de Pinochet a partir da revolta popular de 18 de outubro de 2019, o qual favoreceria a frustração social e um clima popular retrógrado. Mas, mesmo assim, seja qual for o cenário, a revolta terá dado uma invectiva fatal ao estado neoliberal chileno.
O que está em jogo então em setembro é um salto para uma nova ordem democrática, da qual teme a minoria capitalista e conservadora do país. Em fevereiro passado, a BBC de Londres relembrou um dado do World Inequality Report 2022, “o 1% mais rico do Chile concentra 49,6% da riqueza total do país”.
O que muda então a Nova Constituição?
Restauração da Soberania Popular
Desde a independência (1810), as 5 constituições anteriores foram impostas por golpes e/ou ditaduras. A de 2022, poderia assim, ser a primeira criada democraticamente, portanto pela Soberania Popular.
Por outro lado, em um tempo histórico mais curto, a baixa participação eleitoral foi um dos sintomas de um crescente mal-estar social. Se após o plebiscito de 1989, uma democracia mínima voltou no marco da constituição dos militares (1980), a participação eleitoral e a má avaliação das instituições públicas só pioraram (ver: Mayol, 2012; Ríos, 2017). Em 2019, após a explosão social, a participação, especialmente da juventude, retomou o vigor. No plebiscito de entrada (25/10/2020), 80% queriam uma nova constituição, e Gabriel Boric (ex-líder estudantil, 35 anos) foi eleito presidente (19/12/2021) por quase 60% dos votos, eleição que registrou uma participação recorde.
E, se a revolta representou o poder cidadão fora do sistema, o fim da Assembleia Constituinte em julho próximo culminará um processo de restauração da Soberania Popular e, portanto, de revitalização democrática. Novas instituições públicas que re-situam a legitimidade dentro do sistema político (paridade, plurinacionalidade, unicameralismo moderado, descentralização, estado social, democrático e ecológico).
Reconhecimento das raízes: o Estado plurinacional
Após 400 anos de assimilação forçada, genocídio e redução (lembre-se que na Patagônia até o final do século XIX se pagava por orelha de índio assassinado), a dívida histórica com os povos nativos (12 etnias e minorias culturais) tende a se fechar.
Um novo capítulo plurinacional se abre com os povos originários. Eles fizeram parte da assembleia constituinte (primeira vez por direito próprio em um órgão soberano), e a nova constituição os integra estruturalmente (assentos reservados) ao novo poder legislativo, além de autonomia territorial e um novo sistema de justiça com tribunais indígenas, entre outros vários elementos.
No entanto, são mudanças que surgem num cenário delicado de conflito com o povo Mapuche. Em abril passado, durante a primeira semana de governo, Izkia Siches, jovem ex-presidenta do colégio de médicos, crucial na vitória de Boric no segundo turno e atual ministra do Interior, foi recebida com tiros no ar em território Mapuche quando tentava abrir o diálogo.
Trata-se de um conflito étnico, mas também económico que se radicalizou, ampliado pela violência entre atores madeireiros (capital), policiais (Estado) e étnicos (povos originários). Alguns grupos Mapuche, como o CAM (Coordenadora Arauco Malleco), declararam recentemente o “preparo da resistência armada”. Cenário complexo que anuncia a difícil instalação da nova ordem constitucional, especialmente em algumas regiões do sul do Chile (região do Bio-Bio e da Araucanía) apesar do processo constituinte inédito e do novo governo.
Fim do neoliberalismo: um Estado social, democrático e ecológico
O novo Estado social e democrático (art.1) é chave. Apedreja o Estado neoliberal imposto pela ditadura. Assim, se durante os anos 1990 o Chile foi o laboratório da doutrina do Consenso de Washington, hoje poderia se tornar no epicentro do projeto de Estado de Bem-Estar nos países do sul.
A segurança social (educação, saúde e pensões) é a missão fundamental que vai reger todos os poderes do novo Estado. Uma missão que terá que se alcançar com democracia paritária e ecologia (“a natureza tem direitos” diz o novo texto art.9), como eixo igualitário de desenvolvimento que permita às classes trabalhadoras maioritárias sair da dinâmica do trabalho sem fim que as afoga (Castillo et al., 2022). Assim, todas as ações estatais e de gestão do território poderiam ser regidas por esses princípios, por essa missão e por esse método, seja qual for a cor política dos próximos governos.
Em definitivo, setembro de 2022, poderia coroar uma profunda transformação do país. Por um lado, o governo de Boric terá que conduzir uma difícil transição constitucional. E, por outro lado, se a explosão social de 2019 é a principal clivagem do Chile contemporâneo, tal transformação cultural poderia ser galvanizada por uma Nova Constituição, encontrando talvez eco no resto do continente.
Chileno, cientista político e geógrafo, pesquisador da Universidade Sorbonne Paris Nord. Ensina atualmente na Universidade de Lyon e de Saint Étienne na França. Também ensinou em várias universidades latino americanas. É ademais consultor internacional, especialista da América Latina. Morou no Brasil, desde onde vem desenvolvendo pesquisa na Amazônia ocidental transfronteiriça. As suas áreas de pesquisa: conflitos geopolíticos, econômicos e sociais.
Por Juan-Pablo Pallamar