A força e a importância dos sindicatos estão sendo reafirmadas a cada dia, diante dos nossos olhos. Na França, já foram mais de uma dezena de grandes jornadas nacionais de luta contra a reforma que retira direitos previdenciários, desde janeiro, com greves e manifestações em todo o país, reunindo milhões de pessoas em cada uma delas1. No Reino Unido, uma onda de greves iniciada em meados de 2022 segue em curso, com paralisações de trabalhadores do transporte, da educação, e do sistema de saúde pública, entre várias outras categorias. Às greves se somam manifestações públicas, convocadas por um movimento amplo (Enough is Enough), contra a elevação do custo de vida e a defasagem salarial (Engelhardt, 2023). Papel semelhante tem desempenhado o movimento Vida Justa!, em Portugal, reunindo moradores das periferias das grandes cidades e trabalhadores em geral contra o aumento de preços da habitação e a favor da reposição salarial frente à alta inflacionária. Lá também, greves de trabalhadores de transportes e da saúde pública têm acontecido desde 2022 em maior número e os profissionais de educação, mobilizados por um sindicato independente (STOP), estão à frente das maiores paralisações nacionais em muitos anos1. Na Alemanha, a maior onda de greve da última década está tendo lugar em 2023, com protagonismo de trabalhadores de transportes, servidores públicos e pessoal dos correios, gerando enlaces interessantes entre sindicatos e os movimentos da “Greve pelo Clima” e da “Greve Internacional de Mulheres”.
Pode-se argumentar, com razão, que os sindicatos estão reaparecendo na cena pública em um momento de retirada de direitos – todas as greves e manifestações multitudinárias francesas não foram suficientes para derrubar a reforma previdenciária imposta aos franceses pelo governo Macron – precarização contínua das relações de trabalho e das condições de vida da classe trabalhadora, com perdas inflacionárias não repostas aos salários. A resposta necessária a essa argumentação é: como estaríamos, frente à ofensiva do capital, sem essa resistência dos sindicatos? Com certeza não estaríamos melhor.
Outro argumento é que os exemplos aqui citados são de países europeus, com longa tradição sindical e relativa estabilidade democrática (ainda que a violência da repressão às lutas da classe trabalhadora também se faça visivelmente presente por lá, como o caso francês não se cansa de demonstrar). E como se posiciona o “Sul Global”, em meio a uma precariedade estrutural das relações de trabalho e tradições assentadas na repressão estatal/do capital a todas as lutas da classe que vive do próprio trabalho? Um bom exemplo de como, também nessas situações, os sindicatos ainda fazem diferença pode ser encontrado na Índia, país em que mais de 90% de trabalhadores(as) estão na informalidade e à frente do Estado encontra-se um governo de extrema-direita que não hesita em usar as armas da repressão política. Mesmo em um quadro a princípio tão desfavorável, as organizações sindicais têm sido capazes de mobilizar trabalhadores informais (não sindicalizados), ano após ano, realizando grandes greves gerais que paralisam pelo menos 200 milhões de pessoas de cada vez (Instituto Tricontinental de Pesquisa Social, 2023).
Como situar o sindicalismo brasileiro nesse quadro conjuntural internacional? Certamente estamos longe de assistir a uma ascensão de lutas sindicais e greves por aqui. A última onda ascendente de greves no país ocorreu entre 2013 e 2016, sendo a greve geral de 2017 o último movimento nacional relevante protagonizado pelos sindicatos no país. As 1067 greves registradas pelo Dieese em 2022, correspondem a cerca de metade do número de greves contabilizadas em 2016 (Dieese, 2023). A situação política profundamente adversa para a classe trabalhadora, aberta com o golpe de 2016 e aprofundada no governo neofascista de Jair Bolsonaro (PL), explicam parcialmente a situação. Além disso, o quadro de precarização estrutural das relações de trabalho no país também tem peso expressivo na dificuldade de mobilização pelos sindicatos. Afinal, se o mercado de trabalho brasileiro atualmente comporta 8,8% de desempregados na população ativa, 3,5% de desalentados (desempregados que desistem de procurar emprego) e 39% de trabalhadores informais, a parcela da força de trabalho empregada formalmente e, portanto, passível de ser representada pelos sindicatos, nos limites estreitos da lei, é minoritária (IBGE, 2020). Além disso, a taxa de sindicalização vem sofrendo uma queda contínua nos últimos anos: em 2019 apenas 11,2% da população ocupada estava filiada a sindicatos (Outras Mídias, 2020).
Após a derrota eleitoral de Bolsonaro e o início do governo Lula, eleito a partir de pautas populares, é de se esperar que as condições para a luta sindical melhorem significativamente no país. Para tanto, porém, não basta a melhoria do ambiente político, sendo necessária uma significativa alteração das práticas sindicais. Algumas das situações internacionais comentadas no início desse artigo podem apresentar pistas para essa renovação do sindicalismo por aqui, embora não existam fórmulas infalíveis para isso.
Diante da precariedade dominante no mercado de trabalho, é fundamental que o sindicalismo brasileiro vá além da necessária representação dos trabalhadores formalizados em suas pautas econômicas e seja capaz de envolver desempregados e informalizados em movimentos amplos. Para isso, é necessária uma pauta de luta pela revogação das (contra)reformas do período pós-golpe de 2016 – especialmente as reformas trabalhista e previdenciária, além da liberação geral das terceirizações – e a defesa de saídas políticas para o desemprego e a precariedade, como a redução da jornada de trabalho sem redução de salários e programas de obras públicas que gerem empregos. Nesse último campo, é preciso ter em conta que a precariedade para a classe trabalhadora se dá não apenas no mercado de trabalho, mas também nas suas condições de reprodução como força de trabalho. Condições de vida relacionadas à habitação, saúde e educação demandam investimentos públicos em larga escala, revertendo a “austeridade fiscal” e as privatizações que marcaram a lógica da atuação dos últimos governos. O enorme desafio à humanidade posto pela crise climática, também exige intervenções do Estado em larga escala, por meio do reflorestamento e da transição energética, entre outras medidas, que devem ser parte da pauta sindical, gerando “empregos pelo clima”. Apoiar o governo Lula em todas as medidas que se mostrem positivas nessa direção, exigirá, também, a autonomia das organizações para criticar suas ambiguidades e exigir avanços mais profundos.
Para levar adiante essas lutas, os sindicatos são fundamentais, mas sozinhos serão insuficientes. Durante as fases mais agudas da pandemia de covid-19, vimos como a capacidade de auto-organização das parcelas mais precarizadas da classe foi fundamental para garantir, com base em movimentos de solidariedade social, cuidados mínimos necessários, como alimentação e medidas sanitárias. À frente dessas iniciativas, estiveram movimentos sociais tradicionais, como o MST e o MTST, mas também uma enorme rede de associações comunitárias, movimentos de mulheres, jovens estudantes e comunicadores periféricos, além de novas articulações do movimento negro, entre outros. Um sindicalismo capaz de articular-se a esses movimentos, em frentes unificadas de luta por pautas comuns ao conjunto ampliado da classe, só terá a ganhar, beneficiando-se da vitalidade dessa nova militância, assim como aprendendo com seus métodos de mobilização e intervenção.
Os desafios são imensos, mas não podemos fugir de enfrentá-los, porque o grau de destrutividade social do capitalismo atual não nos deixa margem de escolha.
Por Marcelo Badaró Mattos, Professor de História da UFF, membro do Conselho Curador da Fundação Lauro Campos e Marielle Franco.