Manuela Trindade Oiticica
Uma cerveja bem gelada? Aceito. Dois goles de tutela? Não, obrigada. Sim, eu sei como segura um tamborim. É, é verdade. Um surdo mal tocado pode derrubar uma roda de samba. Tô sabendo, meu amigo, eu conheço essa música, mas olha, não necessariamente eu toco pra caramba. Toco o normal de quem sabe tocar e eu sei que isso te dói em algum lugar que você nem sabe o que tem é que eu conheço os códigos, compartilho saberes mundanos que envolvem uma manifestação popular. Igual a você. Rua, sabe? Eu também. Parece que meu lugar prosaico te deixa mais inseguro. Toco mais do que muito homem? Possivelmente, isso é verdade. Possivelmente, isso é mentira, mas o mais provável é que o único sentido nessa comparação é reforçar o lugar onipotente do homem, não o meu. Desagradeço, que isso nunca foi um elogio. Obrigada.
Fica tranquilo que eu aguento tocar as três horas previstas de apresentação, não se aquiete que eu seguro o andamento mais rápido e não, não vou correr na música mais lenta. Pódeixar. Agora vem uma paradinha na música, eu sei que é minha vez de fazer a virada e, veja, vou dizer algo que você não deve perceber.
Tenho que fazer o dobro pra ser reconhecida pela metade.
A virada do meu instrumento na hora do silêncio vai ser boa. Aliás, muito boa. Muito melhor do que precisa pra essa roda de samba improvisada em que, sejamos francos, quase ninguém sabe tocar direito, mas em que quase todo mundo tem esse direito. Quase todo mundo. Se eu fizer tá tá tá, pode soar simples demais, tadinha, tá começando. Se eu fizer prapum tatá pracará tatatá, exibida demais, pra que isso, gente? alguém diz pra moça que o samba é arte do singelo. Tudo bem, eu já sei a medida. Mais uma vez obrigada, com licença. E não se aquiete. Tente até não me enxergar muito. Tem mais gente tocando. Tocando melhor, tocando pior, normal. Olha pra mim. Normal, tá vendo? Pronto. Pode parar de olhar. Uma cerveja? Aceito. Uma hora alguma coisa vai dar errado, é do jogo. A gente bebe, se empolga, e o samba é desses que desnorteia. Você vai olhar de novo. Vai olhar, porque quando der errado, sem querer querendo, você vai olhar pra mim. Será que não foi ela? Pode ter sido, pode não ter sido, mas eu sempre vou ter que responder por isso.
É, eu entendo. É mais fácil pra você quando eu sou diva e canto, quando eu sou tia e cozinho, quando eu sou linda e musa. Somos tudo isso também e não há problema, dá gosto sublinhar tradição. Mas aí que também damos na cara do tambor, mão-pesada-de? Deixa-me completar a frase: mão pesada de quem sabe a contundência do couro. Violão sete cordas, daqueles bem maestro? Cabe nela. Escuta, desiste enquanto é tempo da teoria da unha mais mole, o dedo que não alcança, a mão menor que não crava. O Romário tinha 1,68m e fez gol de cabeça nos suecos. Com licença, obrigada. Eu não quero brigar, por favor, obrigada. Saí de casa pra tocar e só. Você nem sabe quantas coisas têm que se mexer pra eu ter o direito de ficar parada.
Um instrumento é porque é muito grande, o outro deve ser muito pesado, aquele ali exige força. Tem uns cientificismos que só servem pra ser os primeiros aliados para as desculpas. Pros vetos. Pras opressões. Mas deixa eu te dizer, se tiver chance a gente faz tudo. Senão, vejamos. A gente já faz mesmo sem muita chance. Deixa-me te dizer. Mas tem que ser no duro, chance desde pequenas.
A guitarrinha de plástico, o rabisco fora da folha. Poder expulsar sem dó o berro da garganta que não vem ninguém dizer que fica tão feio pra menina berrar assim. Bater de espancar a lata de leite em pó sem se ouvir por aí que a mão da gente tem que ser precisa ser! delicada e não pode bater forte assim, que menina agressiva, meu deus. Depois tem que poder ficar até mais tarde na rua, porque muito desse baticum vem na fresca da madrugada, você sabe. Tem perigo pra todo mundo, né? mas uma rua escura dessas, a gente sozinha, já pensou? E tem um ócio aí pra poder namorar a música, o instrumento. Lembre só que nossa jornada é maior. Nossa obrigação com o trabalho, a limpeza da casa, do corpo, da mochila, da calcinha, da dobrinha do pescoço, o caderno organizado, a letra bonita, as contas em ordem, nossa roupa não pode ser todo dia a mesma. Ficar amarrotada, ter mancha de sangue, não tem charme. A raiz branca do cabelo, sobrancelha, unha, aquela mulher tem um jeito de mal cuidada, né? Ainda por cima ganhamos pior e nosso espaço de lazer é menos o da brejeirice e mais o do controle, tipo uma casa com quatro paredes. Reparou: nem falei dos filhos.
Mas olha, eu aceito uma cerveja, e teria muito mais pra te falar. Até porque eu não falei nada. Só ri quando você disse que eu deixava a roda de samba mais bonita e perfumada, e cada dente que eu não mostrei no meu sorriso amarelo de quem não quer se aporrinhar era uma dessas palavras escritas acima e que, tenho a mais plena convicção, você nem desconfia que existam.