Luiz Arnaldo Campos
As ações desfechadas pelo governo de Jair Bolsonaro contra os povos indígenas não são apenas ataques pontuais. Os objetivos vão além e estão a serviço de uma antiga quimera: a construção de um país onde a presença dos índios seja uma página do passado.
Não foi inventada pelo capitão. Trata-se de uma falácia antiga, anterior a sua presença na Terra. Na década de 1940, ao tirar o visto para o Brasil, o famoso antropólogo francês Claude Levi-Strauss foi inquirido pelo funcionário da embaixada brasileira que queria saber qual o motivo de sua viagem ao nosso país. Respondeu que queria estudar os povos indígenas e o funcionário afirmou peremptoriamente: no Brasil, não existem mais índios.
Num raciocínio, evidentemente racista, esse amanuense provavelmente estava preocupado em passar a imagem de um Brasil moderno e avançado, portanto sem índios, conforme os padrões da época. Ele antecipava o projeto bolsonariano.
Blitzkrieg contra os indígenas
A atual razia anti-indígena, comandada pelo Palácio do Planalto, tem a cabeça de ponte no projeto de lei 490, que abre os territórios indígenas para o agronegócio, mineração, construção de hidrelétricas e traz embutido o conceito de marco temporal. Segundo esse conceito, só podem ser consideradas indígenas as terras que foram ocupadas pelos povos originários até o dia 5 de outubro de 1988, data de promulgação da atual Constituição. No jargão militar esse raciocínio equivale ao chamado movimento de pinça, utilizado nas manobras de cerco e aniquilamento. Por meio da aplicação do marco temporal, reservas indígenas podem ser canceladas, inclusive os territórios demarcados para as populações em isolamento voluntário, já que é impossível provar onde esses povos nômades estavam em outubro de 1988. Ainda pelo PL, as terras que sobrarem serão arrebatadas, cedo ou tarde, pela entrada “legalizada” de garimpeiros, empresas de mineração, fazendeiros que rapidamente transformarão os antigos senhores da terra em assalariados de quinta categoria. No ano passado, um repórter da Folha de S. Paulo flagrou as condições em que se encontrava uma aldeia munduruku, abduzida pelo garimpo: alcoolismo, prostituição, perda de autoridade por parte do cacique e guarda-costas indígenas para os “donos” do garimpo.
Um projeto colonial
Arrebatar as terras e transformar os indígenas em “indivíduos produtivos” é o projeto inicial da colonização brasileira. No Brasil dos séculos XVI, XVII e XVIII, os chamados “descimentos”, deslocavam de maneira forçada os povos das aldeias e os traziam até os burgos urbanos, e aqueles que não eram escravizados eram jogados nas aldeias jesuíticas, os quais perdiam a identidade cultural e se transformavam em ourives, carpinteiros, pedreiros, coureiros, artesãos, trabalhadores braçais e até músicos, tudo para o desfrute da ordem religiosa ou dos colonos que podiam “emprestar” os chamados “bugres”.
Ao longo do século XX, esse projeto foi tendo atualizações: guaranis foram transformados em trabalhadores escravos nas plantações de erva-mate no Sul e Centro-Oeste do Brasil, pankararus viraram vaqueiros no Nordeste e ashaninkas, compulsoriamente, se transmutaram em seringueiros, na Amazônia. Nesse processo, um complemento indispensável foi o desencorajamento e a proibição do uso das línguas originais de cada povo, num processo de acaboclamento, que em última instância, significa extinção. Como diria Darcy Ribeiro: “caboclo é o índio que perdeu a tribo”.
A chave da questão é o território. Ainda que um indígena, mesmo sem falar o idioma original e vivendo na cidade, permaneça indígena é fato que o desaparecimento do espaço físico onde os ancestrais viveram, falaram sua língua e exercitaram sua cultura, acelera enormemente a desaparição de sua etnia, num processo já visto várias vezes, no Brasil.
Assim, como a “solução final “nazista projetava a erradicação física de judeus e ciganos, o projeto bolsonariano tem como centro a extinção dos povos indígenas. Se o holocausto nazista se nutria de preconceitos que naturalizavam o extermínio das raças inferiores, a proposta bolsonarista se apoia num senso comum da ideologia do progresso que igualmente naturaliza a desaparição dos povos originários. Segundo tal consenso, o indígena é um primitivo e como tal deve desaparecer como os pitecantropos e os neandertais, engolfados pela maré irresistível da civilização. O próprio Marechal Rondon, defensor dos índios, fundador do indianismo no Brasil e ele mesmo, um bororo, também projetava a diluição dos indígenas na identidade geral de brasileiro. Para o homem que disse “morrer se for preciso, matar nunca”, o destino dos povos originais era se transformarem em lavradores, numa espécie de novo campesinato.
Um povo e uma pátria
Para além dessa espécie de “destino manifesto”, proclamado há muitos anos pelo Estado brasileiro e as classes dominantes, a supressão das terras indígenas e seus povos é também estimulada por um ideologismo que grassa no interior das Forças Armadas brasileiras, com amparo em inúmeros artigos que circulam nos famosos cursos da Escola Superior de Guerra. Trata-se do conceito que estabelece um sinal de igual entre as noções de povo e Estado. Segundo esse raciocínio, o Brasil, apesar de possuir no seu interior aproximadamente três centenas de povos com idiomas e culturas singulares deve ser considerado um país unicultural, habitado por um único povo: o brasileiro. E qualquer tentativa de reconhecimento de outros povos ou nações devem ser consideradas intentos separatistas a serviço de potências estrangeiras.
Esse pensamento bizarro leva a aberrações como, em nome da segurança nacional, as Forças Armadas não tolerarem territórios indígenas (que são terras da União) em zonas de fronteiras e concordar que propriedades particulares (que podem ser vendidas, inclusive para supostas potências inimigas) possam ocupar as áreas fronteiriças com outros países.
Essa aversão ao plural e ao diferente, esse culto ao unicismo um povo, uma pátria que lembra o slogan nazista “Ein Volk, Ein Reich, Ein Führer” (Um Povo, Uma Pátria, Um Líder) evidentemente se choca com a aceitação da existência diferenciada dos povos indígenas e se coloca na contramão da marcha histórica do continente, bastando lembrar o exemplo da Bolívia cuja denominação oficial é hoje Estado Plurinacional Boliviano e do Equador, que na sua Constituição se declara um país plurinacional e multicultural.
A fome de terras
Mas a “solução final” dos bolsonaristas para os povos indígenas, a PL490, não é motivada apenas por bandeiras ideológicas ou por concepções doutrinárias sobre o que deve ser o povo e o Estado brasileiro. A pressa na aprovação é a mesma que impulsiona as privatizações da Eletrobras e dos Correios. É o mesmo espírito de “fim de feira”, de fazer negócios, enquanto a situação permite, e assim liquidar um país.
As terras indígenas são o principal ativo brasileiro ainda em mãos da União. Elas compreendem 13% do território nacional, com amplíssima cobertura florestal e riquíssimos recursos hídricos, minerais e uma biodiversidade gigante. Pertencem ao Estado e somente o usufruto vitalício é concedido aos povos originários que lá vivem. Assim, o que o PL 490, se aprovado, fará, por meio do uso do marco temporal e da abertura das reservas indígenas para o capital privado é parte do processo de privatização do país e do empobrecimento geral dos brasileiros.
Por isso, o “empreendedorismo indígena” propagandeados pelos bolsonaristas, usando argumentos como “os índios querem progredir”, e “querem ganhar dinheiro”, se parece com as arengas a favor da uberização do trabalho e de uma suposta liberdade para escolher a maneira de trabalhar e viver. O resultado tanto num caso como no outro é o mesmo: miséria e destruição As terras indígenas são hoje o principal alvo da expansão predatória da economia brasileira. A simples expectativa da aprovação do PL 490 gerou um aumento exponencial de pedidos de lavra em áreas pertencentes aos territórios indígena. Como prova, temos o exemplo de 56 terras indígenas homologadas, das quais 60% dos respectivos territórios já estão requeridos para processos minerários. A cumplicidade dos órgãos federais que registram e legalizam tais absurdos estimula a agressividade de garimpeiros clandestinos, particularmente nas terras dos ianomâmis em Roraima e dos mundurukus, no sudoeste paraense, epicentros da atual corrida amazônica do ouro. O ataque a tiros de uma aldeia ianomâni e o incêndio da casa de Maria Leuza, liderança munduruku, são exemplos do sentimento de impunidade dos invasores de terras indígenas, estimulados por declarações do presidente da República e seus apoiadores.
Aprovado na Comissão de Constituição e Justiça, o PL 490 aguarda vez para ser votado pelo plenário da Câmara de Deputados.
A aprovação é dada como provável, uma vez que interessa não só a bancada de extrema direita como também ao Centrão, perpétuo guardião dos interesses dos latifundiários e grandes empresas mineradoras, todos de olho na terra dos índios. Mas o ataque que tem no PL 490, o eixo vertebral também se apoia em outras iniciativas.
Ataque pelos flancos
No início de agosto deste ano, na volta do recesso parlamentar, a Câmara dos Deputados aprovou por 296 votos a favor, 196 contra e uma abstenção, o Projeto de Lei 263. Conhecido como o PL da Grilagem, anistia depredadores e permite a legalização de terra grilada da União, bastando para isso a autodeclaração do ocupante. O PL dá carta branca, inclusive, para que os grileiros reivindiquem terras indígenas e quilombolas, com processo de homologação nos estágios iniciais. O PL, agora no Senado, é, na verdade, um legalizador do esbulho das terras indígenas e um incentivo para que o processo de despojo siga adiante. Para se ter uma ideia do que isso significa, basta citar o relatório do Instituto de Pesquisas Ambientais da Amazônia (IPAM), apoiado em dados do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (INPE) que aponta como entre 2016 e 2020, o cadastro de propriedades rurais, dentro de terras indígenas, aumentou em 55%, o que significa uma área quase seis vezes do tamanho do Distrito Federal. E isso sem uma lei “amiga”. Imaginem o que virá em diante.
A ofensiva anti-indígena do governo federal compreende iniciativas legais que ferem de morte os direitos desses povos, consagrados na Constituição de 1988 e em outras leis voltadas para sagrar o “fato consumado” do roubo de terras e o incentivo para que sigam de forma acelerada. Além disso, possui outra frente de batalha: o desmantelamento do organismo, criado por Rondon, sob o nome de Serviço de Proteção do Índio, exatamente para proteger e defender os povos originais do Brasil: a atual Funai.
Desde o governo Temer, a Funai vem sendo vítima de um processo de esvaziamento que, sob Bolsonaro, só se acelerou. Sob o comando de um delegado da Polícia Federal e sofrendo pesados cortes orçamentários, tornou-se numa repartição burocrática omissa e inoperante. Segundo Sidnei Possuelo, um dos mais reconhecidos sertanistas do Brasil e ex-presidente da Funai, o órgão se tornou algo extinto e morto.
A resistência
Apesar de aparentemente estar com a faca e o queijo na mão, Bolsonaro e seus asseclas estão às voltas com um fator que não estava no cálculo dos exterminadores do Planalto: a resistência dos índios.
Elas e eles podem ser vistos na Esplanada dos Ministérios, em Brasília, enfrentando cassetetes e gás de pimenta, no bloqueio de estradas, caminhando por trilhas. A luta dos povos indígenas pelo direito de viver, desdobra-se em duas dimensões: uma pública com grandes atos e manifestações nos centros do poder, outra, quase anônima, sobre os seus territórios.
No silêncio das matas, Guardiões das Florestas enfrentam madeireiros e garimpeiros no interior do território, apreendendo toras derrubadas clandestinamente ou queimando máquinas de garimpos ilegais. É uma luta dura já que os oponentes há muito tempo foram incorporados na malha global do capitalismo. Hoje, quando se fala de garimpos em terras indígenas, fala-se não mais de pobre mineradores isolados, mas sim de empreendimentos que são capazes de colocar máquinas no meio da selva, como pás carregadeiras as famosas PC’s cujo custo não é menor do que R$1 milhão, cada. Da mesma forma os madeireiros que abatem madeira de lei em terra indígena são apenas a ponta de redes bem articuladas no comércio internacional. É um enfrentamento difícil e que custa caro. Recentemente, dois guardiães, um guajajara e outro munduruku foram assassinados em emboscadas no meio da mata. Apesar de tudo, a luta prossegue sem esmorecimento e se traduzem em muitas iniciativas desde a autodemarcação das terras, sem esperar pela Funai, como a ocupação de fazendas localizadas em território indígena.
Para além da resistência
Afora essas lutas que poderiam ser chamadas de resistência, a recusa dos povos indígenas em desaparecer tem também outro componente que poderíamos chamar de autoafirmação cultural. Pelo menos nos últimos trinta anos, a população indígena, que hoje está por volta de 1 milhão de habitantes, cresce ano a ano, não só nas aldeias, mas também nas cidades, onde boa parte do contingente já é composto de estudantes universitários.
Com alguma frequência começa a se noticiar a graduação, mestrado ou doutorado de algum “parente” e depois do saudoso Mário Juruna, os povos indígenas voltaram a contar com uma voz no Congresso Nacional, a deputada federal Joênia Wapixana. Igualmente significativo é o aumento de pessoas que passam a se autodeclarar “indígenas”, seja nas cidades ou na mata. De um tempo para cá, algumas etnias que se julgavam extintas, reapareceram, como os boraris e arapiuns, na região paraense do Baixo Amazonas, ou os tupinambás em pontos da Bahia e outros estados. São quase sempre fruto da inversão do processo de “acaboclamento”. Grupos de pessoas que rompem com mais de um século de medo, quando foram proibidos de falar seus idiomas e aprenderam a negar a herança indígena, agora assumem orgulhosamente a origem. Esse fenômeno se verifica também nas cidades. No ano passado, o autor deste artigo conheceu um grupo de habitantes de uma comunidade pobre de Osasco que alegremente se declarava pankararu e fazia questão que na certidão de nascimento dos filhos constasse esse registro étnico.
Num país onde ser índio traz poucas vantagens e, pelo contrário, muitos dissabores, é de se perguntar de onde vem a força que produz essa renascença, que parece ficar mais forte, quanto mais sofre ameaças. Podemos arriscar algumas hipóteses.
O curso atual da luta anticapitalista tem favorecido a busca de identidades coletivas como forma de enfrentar o massacre e a homogeneização.
Existe também o crescente impacto do desastre ambiental e a hecatombe climática que têm favorecido a valorização de culturas que se articulam com a natureza ao invés de destruí-la. E no meio intelectual e acadêmico, teorias como da “decolonialidade” e conceitos como o Bem Viver, bebem na fonte de culturas indígenas. Aliás, vale a pena ressaltar que recentemente o xamã ianomâmi, Davi Kopenawa, teve aprovado o ingresso na Academia Brasileira de Ciências.
Visto tudo isso parece ter chegado a hora de os partidos de esquerda brasileiros, assumirem a questão indígena não como uma “luta de minorias” a qual damos apoio, que pode ser forte e altissonante, mas é sempre um apoio, mas como uma das chaves centrais da Revolução Brasileira. Não se trata apenas de povos em perigo, somos nós próprios que estamos em risco.
Quando os povos indígenas preservam seus territórios das queimadas e do desmatamento não é só a si que beneficiam, mas a todos os brasileiros e a humanidade. Quando defendem as terras enfrentam o grande capital. Quando lutam por suas culturas defendem um patrimônio que é nosso e do qual também fazemos parte. Afinal, como disse o afamado antropólogo Viveiros de Castro: No Brasil, só não é índio quem não quer.