Não se pode falar em transição justa sem se considerar relações trabalhistas e a geopolítica internacional. É preciso desenvolver uma estratégia anticapitalista para prevenir falsas soluções verdes e o acirramento de desigualdades
O termo “transição justa” se popularizou nos últimos anos e surge, principalmente, como resposta a visões predominantes que normalmente não consideram as desigualdades de capacidade e responsabilidade no debate sobre quais mudanças e ajustes devem ser feitos diante da crise climática. De fato, a discussão sobre transição justa já ocorre há cerca de três décadas, mas podemos afirmar que é a partir da sua inclusão nos Acordos de Paris, em 2015, que o termo passa a ser usado com muito mais frequência e por mais atores sociais – sejam eles sindicatos, movimentos sociais ou até mesmo empresas e instituições financeiras. Por isso, precisamos definir melhor o que queremos dizer por transição justa para poder diferenciar entre as versões apresentadas em negociações e modelos de transição e, assim, evitar as armadilhas discursivas criadas pelo uso de “transição justa” por defensores do capitalismo verde.
Primeiro, é importante enfatizar a questão de justiça ambiental e que ela informa o pano de fundo do debate de transições. Quanto mais certas indústrias e setores produtivos passaram a ser identificados por danos ambientais, mais sindicatos e movimentos sentiram a necessidade de articular a pressão por mudanças e regulamentações com a garantia de empregos, melhorias em segurança e saúde, além de negociação com comunidades impactadas. Como estratégia trabalhista, a discussão de transição justa é carregada por sindicatos globais para a pauta climática e se expande para uma discussão que envolve as disparidades entre Norte e Sul Global, entre nações empobrecidas e países ricos e desenvolvidos, e claro, também para as contestações sobre capitalismo e seu papel na reprodução da emergência do clima.
No contexto de empregos, falar de transição justa numa perspectiva de classe – buscando diminuir desigualdades e aumentar as proteções trabalhistas – é ir além de preço e salário. Atualmente, é comum que empresas falem de transição justa nos seus setores considerando a precificação do produto que oferecem – por exemplo, energia renovável – sem considerar o mercado geral de empregos e como trabalhadores circulam nas indústrias que precisam diminuir (decrescer) e nos setores que emergem e se potencializam na transição.
Não por acaso, são crescentes os esforços sindicais para que a transição justa de empregos nos combustíveis fósseis, grande responsável por emissões que causam a mudança climática, envolva o deslocamento dos trabalhadores para outros setores, treinamento adequado, novas formações e até mesmo discussões amplas sobre garantia de empregos e o vínculo de investimentos estatais com a criação dos chamados “empregos verdes”. Organizações sindicais nacionais e internacionais costumam se somar a esses esforços facilitando o debate de transição dentro das associações de classe para que haja diálogo e influência suficiente dos trabalhadores no processo. Afinal, para que o aspecto empregatício da transição seja realmente justo, a participação dos trabalhadores envolvidos se torna essencial. Além disso, há campanhas pela criação de novos empregos em setores estratégicos da transição – muitos focados na área de energia ou de transportes – que, sabemos, cumprirão um papel importante, mas precisam ser também empregos de qualidade e que escapem à precarização que acompanha o mundo do trabalho hoje.
No plano internacionalista e geopolítico, o debate de transição justa ganha contornos sobre responsabilidade e impacto no nível nação-estado. Historicamente, as emissões de gases de efeito estufa se concentraram nos países mais ricos e desenvolvidos: juntos, os Estados Unidos, as potências da União Europeia e a Grã-Bretanha contribuíram com cerca de metade do total dessas emissões desde a Revolução Industrial. A China tem apresentado crescimento em suas emissões nos últimos anos, mas cumulativamente ainda se encontra atrás, com cerca de 11% das emissões globais entre 1850-20201. Enquanto isso, a América Latina como um todo contribuiu com apenas 6% durante todo esse período.
Isso indica uma forte disparidade no que diz respeito à responsabilidade histórica pelas emissões que causam o aquecimento global e acentuam os diversos efeitos da mudança climática. Essa disparidade é observada nesses efeitos, que são também profundamente desiguais. As terríveis inundações no Paquistão em 2022 impactaram cerca de 33 milhões de pessoas no país. O desastre é relacionado à mudança climática e o Paquistão contribui diretamente com menos de 1% das emissões totais enquanto figura entre os dez países mais vulneráveis aos impactos da emergência climática².
Uma transição justa não pode, portanto, ignorar a profunda injustiça climática e as desigualdades globais. Para que países menos desenvolvidos e mais vulneráveis possam fazer sua transição, é preciso reconhecer que a responsabilidade histórica dos países mais desenvolvidos também se traduz como dívida histórica. Países mais ricos também serão impactados, mas as vulnerabilidades nacionais podem ser amenizadas por seus próprios esforços de transição. O problema se acentua quando recursos – financeiros e materiais – necessários para essa transição seguem concentrados nesses países, deixando o resto do mundo à deriva.
Transição justa significa, portanto, reconhecer que se há uma dívida, ela deve ser compensada nas devidas proporções. Por isso, países do Sul Global mobilizam discussões sobre mecanismos de financiamento para suas transições e sobre um sistema que diferencie as metas de redução de emissões para que os países que mais contribuíram na história reduzam mais rapidamente que aqueles que precisam de mais tempo para se reestruturar para mitigar. Importante destacar que essa diferenciação não pode ser usada como desculpa para que países periféricos insistam em modelos de desenvolvimento atrasados e poluentes. Por isso mesmo, é essencial tratar da transição justa como um modelo que envolve compromisso genuíno de todas as partes, sendo a presença de ferramentas de reparação colonial e o cancelamento de dívidas externas bons incentivos para conciliar medidas econômicas e iniciativas essenciais de transição.
Se o sistema capitalista e a herança neocolonial prejudicam esforços de transição, nossa noção de transição justa deve considerar também um horizonte mais radical: para que os esforços trabalhistas e de reparação internacionalista surtam efeito, é preciso mobilizar a transição justa em um horizonte anticapitalista. Ao mesmo tempo, a crise ecológica apresenta um conjunto de problemas que exige soluções de curto, médio e longo prazo, sendo necessário, é claro, que nas negociações do clima já se estipulem mudanças e tecnologias viáveis sob o capitalismo, as quais precisam ser mobilizadas desde já por conta de nossa corrida contra o tempo.
Não se deve supor, no entanto, a possibilidade de uma transição justa plena para o clima completamente sob o capitalismo, cujo funcionamento implica a lógica de acumulação infinita e a falsa conciliação entre capital e natureza. Por mais que elementos da transição energética possam ser realizados no presente, esforços por uma transição justa devem ser combinados a uma estratégia anticapitalista mais ampla para realmente prevenir a tomada de falsas soluções ou o acirramento de desigualdades globais previstas em modelos de capitalismo verde que pregam transição em algumas sociedades ao custo de extrativismo intenso, contaminação e exaustão de recursos em outros locais.
Em um horizonte de transições múltiplas, passando pelas camadas da energia e do carbono, do clima, dos demais gases de efeito estufa e da ecologia em geral, entendemos então que as ações de transição justa devem começar hoje, mas a justiça não se encontra apenas no método de ação. Justiça socioecológica que realmente permite romper com as causas da crise que enfrentamos só poderá ser concretizada em uma sociedade pós-capitalista. Assim, perguntamos: se é uma transição, é transição do quê para o quê? Na escolha entre ecossocialismo ou extinção, uma transição verdadeiramente justa demanda ares ecossocialistas se quisermos evitar a barbárie.
Por Sabrina Fernandes
Socióloga e pós-doutoranda do Centro Avançado de Estudos Latino-americanos (CALAS) no México, onde pesquisa transições justas e antropoceno. É conselheira sênior de pesquisa do Instituto Alameda e membro do comitê dirigente da Rede Ecossocialista Global.