Toda a humanidade ganha com a política de demarcação de terras para povos indígenas que, além de preservarem a natureza, sinalizam alternativas de futuro
Brasil é um país que abriga uma enorme diversidade étnica de povos indígenas em seu território. Por mais que o projeto colonial tente nos exterminar através de um processo de genocídio contínuo, nós, indígenas brasileiros, temos ensinado a sociedade civil brasileira sobre a importância da mobilização coletiva. Assim, nos últimos anos, o movimento indígena tem galgado espaços de protagonismo historicamente ocupado por purutuyas1, e aos poucos temos conseguido avançar, ainda que a passos curtos, ao ponto de hoje podermos contar com um ministério específico para tratar de nossas demandas históricas.
Todavia, ainda existem algumas pautas em que as relações de colonialidade se configuram de maneira hegemônica, inclusive no próprio campo da esquerda progressista. Não é nenhuma novidade que os corpos subalternizados são tolhidos de poder se manifestar sobre algumas pautas e, no caso dos povos indígenas brasileiros, isso é muito sintomático em alguns ambientes de poder: as heranças de um regime tutelar ainda nos coloca como objetos, e não como sujeitos.
A branquitude por vezes quer estar à frente de reflexões sem realizar o recorte necessário de raça, etnia e classe, como no caso do debate referente às mudanças climáticas, que tem sido um debate majoritariamente branco. Obviamente, existem coletivos de pessoas negras e indígenas que lutam por justiça climática, mas em uma sociedade estruturada pelo racismo, as posições de poder e os discursos são instrumentos restritos a uma determinada elite e, por mais que esse debate seja fértil no campo progressista, ainda é muito comum ver pessoas brancas liderando esses espaços.
Os povos indígenas são responsáveis por manterem uma larga porção de florestas, biomas e ecossistemas preservados, sendo fundamentais para o equilíbrio climático do país e quiçá do planeta. Por esse motivo, torna-se necessário cada vez mais realizarmos uma virada epistêmica neste século, que pressupõe uma ruptura com ideias eurocêntricas de que os povos indígenas não possuem conhecimentos ou que os conhecimentos válidos são apenas aqueles ditos científicos. Essa argumentação corrobora para a invisibilidade dos povos indígenas frente a essa temática e legitima o processo de racismo ambiental e epistêmico contra os povos indígenas.
Assim, cabe salientar que os territórios indígenas são notáveis barreiras ao desmatamento e às emissões associadas de gases de efeito estufa, em especial o CO2. Nesse sentido, torna-se cada vez mais necessário que as pessoas residentes nos grandes centros urbanos tenham o conhecimento sobre a luta histórica dos povos indígenas brasileiros para terem suas terras demarcadas: o resultado dessas políticas demarcatórias tende a afetar toda a sociedade brasileira. Não é admissível permanecer sobre a égide de uma lógica desenvolvimentista que expropria a possibilidade das futuras gerações existirem neste planeta e não se pode seguir ignorando que as comunidades indígenas têm sofrido de modo desproporcional os efeitos das mudanças climática – tendo sido justamente as que muito pouco ou nada contribuíram para a catástrofe que se anuncia.
Isso posto, torna-se importante ressaltar que a luta pela demarcação de nossas terras é travada tanto no território tradicional quanto nas cidades. Atualmente, existe no Brasil um quantitativo expressivo de povos indígenas que moram em cidades e nem por isso deixam de ser indígenas. Essa afirmação torna-se necessária pois a sociedade não indígena ainda possui uma imagem estereotipada do que é ser indígena, atrelando o lugar de sua vivência à sua identidade.
Nós, povos indígenas, temos feito uma luta histórica no combate às mudanças climáticas, até mesmo antes dessa luta ser conhecida por esse nome. O modo de vida tradicional indígena pressupõe uma relação de (co)existência com os recursos naturais – é como se o território e toda biodiversidade que nele reside fosse uma extensão de nossos corpos e, por esse motivo, o cuidado é um elemento constitutivo dessa relação. Nesse sentido, os povos indígenas brasileiros devem estar à frente de debates referente às mudanças do clima, pois nós somos nações que conseguimos elaborar um modo de ser/estar no mundo para além do capitalismo.
Segundo o relatório IPCC (2022), o planeta Terra está ficando cada vez mais próximo do ponto de não retorno do aquecimento global e, cada vez mais, os centros urbanos – onde vive metade da população mundial – sofrem com os impactos das mudanças climáticas. Esse cenário tende a piorar caso a política de demarcação do estado brasileiro sofra alterações – seja no Legislativo, através de proposições como o Projeto de Lei 490 de 2007, seja no Supremo Tribunal Federal, no caso do julgamento do Marco Temporal. Nesse sentido, a Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib) tem consolidado o entendimento de que o julgamento do Marco Temporal é, acima de tudo, um litígio climático pois, caso o Supremo entenda pela constitucionalidade dessa tese que prevê a restrição das demarcações das terras indígenas no Brasil, a política ambiental do estado brasileiro sofrerá a perda de uma importante aliada na proteção etnoambiental. Para além disso, diversos povos indígenas de todas as regiões do país correm o risco de perderem seus territórios ancestrais e, consequentemente, terem solapadas suas garantias culturais e de existência.
Assim, é evidente que os benefícios das demarcações das terras indígenas ultrapassam os povos indígenas: toda humanidade tende a ganhar com a política de demarcação. Garantir a participação dos povos indígenas no debate público sobre as mudanças climáticas é, portanto, fundamental – tratam-se de sujeitos historicamente excluídos da arena pública, mesmo possuindo conhecimentos milenares que permitem uma ecopolítica que privilegia a vida humana em detrimento do lucro.
É urgente olharmos para as sociedades indígenas e entendê-las como uma possibilidade para o futuro da humanidade. Não é à toa que o slogan da maior mobilização indígena do país, o Acampamento Terra Livre (ATL), este ano foi “o futuro é indígena: sem demarcação não há democracia”. Um dos momentos mais importantes desse evento foi quando os povos indígenas brasileiros decretaram emergência climática, o que carrega consigo uma imensidão de significantes pois, como já dito, somos nós que mais iremos sofrer com essas mudanças.
A solução desse problema passa necessariamente pela valorização das tradições indígenas e, acima de tudo, pelo deslocamento da branquitude em se colocar no lugar da escuta e menos no da fala. É necessário permitir que sujeitos historicamente silenciados possam estar à frente de pautas tão caras à sociedade brasileira e que nós, povos indígenas, não sejamos chamados para ocupar o lugar de protagonismo apenas no mês de abril.
Maurício Terena
Coordenador jurídico da Articulação Nacional dos Povos Indígenas do Brasil