Por Leandro Barbosa*
Eventos como enchentes, secas e incêndios expõem desigualdades e a urgência de políticas eficazes para enfrentar os desafios climáticos.
Quando os rios transbordaram e a força das águas destruíram, mais uma vez, centenas de casas no Vale do Taquari, no Rio Grande do Sul, a agente de saúde, Simone Cardoso, perdeu tudo o que tinha. O rio Taquari cobriu o bairro Feijão Queimado, onde ela morava em Roca Sales, em maio. Ao olhar os destroços que restaram das casas, Simone lembrou dos 40 anos que viveu ali.
“É impossível esquecer tudo o que vivi aqui. Seria uma realização de vida poder voltar. Mas a gente sabe que não vai. Já fomos felizes na beira e dentro do rio Taquari, mas agora tá tudo muito dificil”, disse a agente de saúde pontuando as quatro grandes enchentes que acometeram o estado entre setembro de 2023 e maio de 2024.
A angústia de Simone é a mesma de milhares de gaúchos que viram suas casas e histórias submersas. As enchentes afetaram ao menos 2,3 milhões de pessoas e deixaram 6,5 mil desabrigados.
Nos bairros mais pobres da capital Porto Alegre não era incomum ver pessoas se arriscarem, em meio a água suja e com bichos mortos, para chegarem aos seus barracos e tentarem salvar alguma coisa. Madeira, pregos, talheres, qualquer coisa que diminuísse os custos do recomeço servia.
“Que banco vai dar crédito para um homem pobre e velho como eu? Me resta salvar o que dá para reutilizar e ir buscando um jeito pra viver”, me disse Ademir Soares Rodrigues, 70 anos, em maio, quando visitei a Ilha do Pavão, em Porto Alegre.
Além das perdas materiais, a população também vivencia o impacto psicológico dos fenômenos climáticos. Mariana Serra, cofundadora e CEO da VVolunteer, organização que tem atuado com ações socias e ajuda humanitária no RS, afirma que a sequência de enchentes despertou na população um excesso de medo.
“Em nossos trabalhos de campo, é evidente que as pessoas vivem em constante apreensão. Qualquer previsão meteorológica, um céu cinza ou a iminência de chuva já intensifica a ansiedade e traz à tona o temor de perder tudo novamente”, explica Mariana.
Esse medo constante, segundo ela, vai além do impacto imediato, afetando o planejamento de ações e a implementação de respostas duradouras. “Esse estado de alerta permanente expõe não apenas as fragilidades materiais, mas também o impacto psicológico da crise climática, reforçando a necessidade de incluir a saúde mental nas soluções para as comunidades atingidas”, conclui.
Extrema seca
Lourenço Pereira Leite carrega em sua trajetória os conhecimentos do Pantanal, onde nasceu e vive há 53 anos, em Cáceres (MT). Dos seus antepassados ele herdou a destreza de entender os sinais da natureza, quando ela avisa que a chuva está vindo. “Aprendi que a chuva estava chegando ouvindo os sons do canto do chapéu-velho [Mesembrinibis cayanensis], dos barulhos dos jacarés e dos bugios”, me contou Lourenço, em uma entrevista originalmente publicada na Agência Pública.
Contudo, nos últimos anos, estes sons têm sido menos frequentes. “Tudo isso nos alerta de que as secas serão mais severas aqui no Pantanal”, pontua o pantaneiro. E sua previsão está correta.
A nota técnica “seca extrema e incêndios no pantanal em 2024”, do Mapbiomas, apresenta dados preocupantes sobre a maior planície alagável do planeta. A série histórica analisada compreende o período de 1985 a 2023. Ao longo destes 38 anos, o Pantanal foi o bioma que mais secou no Brasil, proporcionalmente.
Em 2024, a precipitação acumulada de janeiro a maio foi a mais baixa desde 2020, o que já indicava uma das piores secas que o bioma enfrentou. “A água é nosso braço, perna e mão. É vida para nós. A seca impacta tudo. Nossa locomoção está cada vez mais difícil. Pegar peixe, pior. Eu já cheguei a ir mais de 200 km da minha casa para tentar pescar e garantir o sustento da minha família”, lamentou Lourenço.
“Eu estou muito abalado. Eu luto para que minhas filhas consigam estudar, mas parece que minha luta [a pesca] não vai ter futuro. É muito difícil”, desabafou o pescador.
Mais ao norte, no Rio Tapajós, em Santarém (PA), a escassez e aquecimento das águas resultou na morte de 20 toneladas de peixes em novembro de 2024. Nesta região, as consequências da expansão do garimpo e do agronegócio tem afetado profundamente os povos indígenas e comunidades locais, sobretudo ribeirinhas, cujos modos de vida estão profundamente conectados ao rio.
“Estão matando o nosso rio para um grupo de pequenas empresas lucrar ainda mais” denunciou Kamila Sampaio, do Movimento Tapajós Vivo. “Até a cor do rio já mudou por causa da soja e da mineração. Existe muita extração de madeira, garimpo e escoamento de produção agrícola da monocultura no Tapajós”, pontuou.
Em meio à seca, cerca de 400 manifestantes, Kamila entre eles, paralisaram a circulação de comboios de barcas no baixo Tapajós. A iniciativa, liderada por povos indígenas da região, objetivou denunciar as violações em curso e a possibilidade de piora do quadro climático e de direitos humanos caso a produção de soja se intensifique ainda com projetos como a Ferrogrão, uma ferrovia que ligaria Sinop (MT) a Miritituba (PA) para facilitar a exportação de grãos pelo rio.
“Estão nos impedindo de pescar e matando o Rio Tapajós para exportar soja para a China e para a Europa. Se a Ferrogrão for construída, a seca e toda essa situação vai piorar ainda mais”, explicou Raquel Tupinambá, coordenadora do Conselho Indígena Tupinambá do baixo Tapajós Amazônia (CITUPI), durante a manifestação.
Brasil em chamas
Em 2024, além do Pantanal e da Amazônia, o Cerrado também enfrentou uma seca extrema. Esses territórios se tornaram ainda mais vulneráveis ao fogo, havendo um recorde de incêndios nos biomas brasileiros de acordo com dados do Programa Queimadas, do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe). Não à toa, a fumaça tomou o céu de cidades em diversas regiões do país, levando São Paulo (SP) e Santarém (PA), por exemplo, a registrarem os piores índices de qualidade do ar do mundo em momentos diferentes ao longo do ano.
Apenas entre janeiro e novembro de 2024, a Amazônia registrou 134.979 focos de incêndio, um aumento alarmante de 43,7% em relação ao mesmo período de 2023, quando foram detectados 93.938 focos. Este é o maior número registrado desde 2007, quando os incêndios ultrapassaram a marca de 181 mil focos. O dado também está 43,5% acima da média dos cinco anos anteriores (2019-2023), que foi de 94.057 focos.
No Cerrado, os incêndios também bateram recordes: 79.599 focos foram registrados até novembro de 2024, o maior número para o período desde 2012. O total representa um aumento de 64,2% em relação a 2023 (48.474 focos) e é 37% superior à média dos cinco anos anteriores (58.070 focos).
No Pantanal, a situação é ainda mais crítica: 14.483 focos de incêndio foram registrados no mesmo período, um crescimento de 139% em relação a 2023 (6.067 focos). Este número é 53,2% maior que a média dos últimos cinco anos.
Daniel Silva, especialista em conservação do WWF-Brasil, explica que os biomas estão conectados e que as ações para protegê-los também precisam ser.
“Os biomas brasileiros estão conectados. A conversão e o desmatamento do Cer rado geram desequilíbrios para a Amazônia e o Pantanal, afetando a disponibilidade hídrica em outros ecossistemas, contribuindo para secas, aumento dos incêndios e ondas de calor . Por isso, não adianta conservar só um bioma, precisamos ter políticas consistentes para diferentes áreas do país. E, no Brasil, barrar o desmatamento é o ponto mais importante para evitar efeitos ainda mais severos da crise climática”, conclui Silva.
O aumento dos incêndios também evidencia a gravidade das condições climáticas extremas e a vulnerabilidade crescente dos biomas brasileiros frente às atividades humanas e à mudança do clima. O aquecimento global, combinado aos efeitos dos fenômenos El Niño e La Niña, tem intensificado a frequência e a gravidade de eventos extremos, como intensas ondas de calor e secas extremas em todo o país.
Esses fenômenos, agravados pela crise climática, geram desastres ainda mais devastadores em áreas vulneráveis, alerta Karina Bruno Lima, doutoranda em Climatologia pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). “Teremos mais eventos extremos e com maior potencial destrutivo. Isso torna imprescindível a implementação de planos de adaptação climática para reduzir vulnerabilidades e aumentar a resiliência”, destaca Lima.
Keila Ferreira, assistente social e especialista em gestão de risco e desastres, explica que uma resposta humanitária eficaz aos crescentes eventos extremos exige uma abordagem que vá além do socorro imediato: “Essas comunidades já enfrentam desigualdades estruturais que intensificam os efeitos devastadores dos desastres provocados por fenômenos climáticos. Enquanto não reduzirmos a desigualdade social, continuaremos enfrentando tragédias com altos custos sociais e econômicos”.
*Jornalista socioambiental, vencedor dos prêmios Gabo, Vladimir Herzog, e Digital Media Awards Americas. Faz parte da rede latinoamericana Waki Ambiental, promovida pelo Pulitzer Center.
**Texto publicado na edição 3 da revista Jatobá.