Alvaro Bianch
Nas últimas décadas uma nova onda de estudos gramscianos começou a ganhar corpo na Itália. Jovens pesquisadores, e outros nem tanto, atiraram-se a um trabalho de leitura meticulosa dos textos do marxista sardo, à pesquisa histórica rigorosa, à escavação documental intensa, à reconstrução conceitual e ao trabalho coletivo. Os resultados já são significativos. Importantes descobertas foram feitas sobre a biografia de Gramsci, sobre o processo de composição dos Cadernos do cárcere e sobre a intenção e os motivos do autor no processo de produção conceitual.
O que caracteriza esses novos estudos é o chamado método filológico: uma atenção particular ao ritmo de composição do texto, ao processo de construção dos conceitos e aos nexos existentes entre esse processo e o contexto histórico e biográfico. O próprio Gramsci já havia apontado esse caminho em uma nota registrada nos seus Cadernos do cárcere: “Se se quer estudar o nascimento de uma concepção de mundo que não foi nunca exposta sistematicamente por seu fundador (…) é preciso fazer preliminarmente um trabalho filológico minucioso e conduzido com escrúpulos máximos de exatidão, de honestidade científica, de lealdade intelectual e de ausência de qualquer preconceito e apriorismo ou posição preconcebida”. E mais adiante sintetizou esse método filológico: “A pesquisa do leitmotiv, do ritmo do pensamento em desenvolvimento, deve ser mais importante do que as afirmações particulares e casuais e do que os aforismos isolados” (Q 16, § 2).
O Dicionário gramsciano (1926- 1937), publicado agora em português pela editora Boitempo é um dos feitos dessa nova onda de estudos. A ideia nasceu nos seminários sobre o léxico gramsciano organizados pela International Gramsci Society-Italia, entre 2000 e 2006, nos quais a comunidade de especialistas discutia certas palavras chaves dos Cadernos do cárcere, tais como filosofia da práxis, hegemonia, intelectuais, jacobinismo, bloco histórico e americanismo. Uma primeira versão das contribuições desses seminários foi publicada na Itália com o título de Le parole de Gramsci (Carocci, 2004), um livro organizado por Guido Liguori e Fabio Frosini.
O Dicionário era, entretanto, um projeto muito mais ambicioso, seja pela abrangência, seja pelo número de colaboradores. Orientados por uma mesma metodologia de investigação, os autores procuram auscultar aquele ritmo do pensamento gramsciano, reconstruindo de modo rigoroso sentido dos conceitos. Pesquisadores e o público interessado têm agora acesso a um instrumento de consulta poderoso, capaz de estimular novas investigações, bem como uma compreensão mais apurada das ideias de Antônio Gramsci.
Uma vez que o léxico gramsciano é parte constitutiva do discurso político brasileiro desde meados dos anos 1970, a publicação do Dicionário pode ajudar a esclarecer alguns equívocos frequentes e ter um impacto positivo sobre o debate político na esquerda de nosso país. Dois casos chamam a atenção. Primeiro o conceito de hegemonia, o qual no léxico da esquerda brasileira frequentemente é sinônimo de dominação, embora Gramsci insistisse fortemente em um outro uso: hegemonia como sinônimo de direção moral e intelectual, de consenso ativo.
Depois, o conceito de bloco histórico, usado no Brasil para definir uma certa aliança de classes no poder quase como no conceito poulantizano de “bloco no poder”, quando para o autor dos Cadernos do cárcere ele era um instrumento conceitual para redefinir em termos não economicistas a relação entre estrutura e superestrutura.
Outras situações poderiam ser enumeradas. Não são questões meramente terminológicas. Um trabalho filológico mais rigoroso, como este exposto pelo Dicionário, pode fornecer um conjunto conceitual muito rico para pensar a estratégia socialista no Brasil. Transformados em slogans esses conceitos perderam muitas vezes seu caráter crítico e transformador. Retornar a eles é um bom caminho para pensar a crise atual e as alternativas a ela. E para isso o Dicionário é imprescindível.