Geraldo José Calmon de Moura
O momento atual vivido e a chegada de um novo pleito eleitoral com características tão específicas nos fazem indagar acerca das possibilidades que se apresentam em um curto e no médio prazo sobre a transformação territorial, o avanço e a ampliação do direito à cidade e a construção de uma sociedade mais justa e democrática.
Sem dúvida, o último quadriênio representou um profundo retrocesso em lutas históricas relacionadas ao acesso à terra e à reforma urbana, que haviam obtido, ao longo das últimas décadas, alguns importantes avanços mesmo em ambientes contrários.
Podemos destacar aqui sobre esse desmonte, a princípio, a drástica alteração adotada nos rumos da política ambiental brasileira, verificada tanto em ações institucionais como de postura na gestão [1] que obteve, como resultado, um descaso internacionalmente reconhecido com o tema e com taxas recordes de desmatamento no Brasil.
Ainda na esfera não predominantemente urbana, destaca-se o tratamento dado às populações tradicionais, em especial à população indígena, em que se explicitou nas palavras do próprio Presidente da República uma falta de interesse na proteção dessas populações, acarretando em um aumento na pressão já previamente existente pela ocupação indevida dessas áreas por grupos com interesse econômico e atividades como o garimpo [2].
Já em relação às cidades, conforme preconizava o então candidato Jair Messias Bolsonaro em 2018, mesmo o princípio da função social da cidade e da sociedade presentes no capítulo de política urbana da Constituição Federal e regulamentado pelo Estatuto da Cidade estava ameaçado.
É curioso salientar que esse princípio, ao contrário do que também costumava dizer o então postulante ao cargo de presidente, já era aprovado e praticado há muito tempo em países da Europa Ocidental de economia de mercado. Já mostramos isso em outro artigo sobre como esse princípio já era aplicado desde a primeira metade do século XX em países como Holanda, França e Inglaterra (Moura & Vieira, 2018). Felizmente, essa promessa de campanha não se verificou.
Concretamente, no entanto, uma série de medidas tomadas nessa administração dificultaram acessos que, até pouco tempo atrás, eram possíveis de serem alcançados por um percentual maior da população brasileira.
O exemplo do programa Minha Casa Minha Vida (MCMV) é emblemático. Ainda que ele seja passível de críticas sobretudo em relação ao incentivo à ocupação nas franjas periféricas dos centros urbanos devido ao menor preço da terra encontrado (Ferreira, 2012), é inegável que ele possibilitou uma ampliação do financiamento imobiliário a setores com ganhos mensais familiares de até 3 salários mínimos, configurando-se como total exceção, já que, tanto no período que o antecedeu, como no período posterior, durante o Governo Temer[3], a parcela da população com potencial de obtenção desse financiamento se restringia e se restringe, quando muito, aos 10% mais ricos da população[4].
Essa limitação imposta na área da habitação com o descaso e a evidente incompetência de gestão, aliados às mazelas trazidas pela pandemia e potencializadas também por uma lamentável postura do governo brasileiro durante a COVID-19, trouxeram um cenário para os centros urbanos jamais visto em outros tempos, com um enorme contingente populacional habitando as ruas e praças.
Na mobilidade urbana, que, para autores como Villaça (2000), configura-se como a principal estrutura urbana responsável pelas alterações e desenvolvimento do espaço urbano, a situação não é diferente. Um modelo de expansão urbana ilimitada, com baixa densidade construtiva e demográfica, pautado em uma periferização com urbanização precária (ainda que muito superior ao verificado na segunda metade do século XX) e com oportunidades de emprego concentradas em outros pontos da cidade inviabiliza de forma definitiva um atendimento minimamente aceitável do transporte coletivo.
O surgimento de aplicativos de veículos e a acentuada queda na demanda a partir da COVID-19 levaram a uma repetição de ações onde as concessionárias de transporte coletivo, sobretudo em algumas cidades médias, simplesmente abriram mão da operação do transporte coletivo, operação assegurada por processo licitatório, por não ver mais na atividade atratividade financeira. O colapso urbano, nesse momento, torna-se iminente.
Também processos mais gerais e complexos, mas com reverberação das dinâmicas locais e, em última instância, em nosso cotidiano, contribuem para uma situação urbanística que, concomitantemente, assusta e praticamente nos obriga a refletir sobre o tema e propor soluções.
Um processo já alertado por Santos (2000) da dinâmica urbana brasileira ser condicionada há muito tempo pela lógica mercantil e não pelos interesses “urbanísticos” se acentuou mais recentemente.
A tendência à “condominização”, sob o discurso da segurança, mas implicitamente condicionado por outras motivações oriundas, por exemplo, da financeirização da habitação, apontadas por Rolnik, (2019) constrói definitivamente um território segregado e com profundas diferenças urbanísticas.
De forma resumida, é essa a situação urbana quer herdaremos em um futuro próximo!
Acrescenta-se, porém, um outro ingrediente, mais profundo e poderoso, que orientará não só a dinâmica urbana, mas toda a vida em sociedade daqui em diante, que é o reacionarismo, totalmente irracional e descolado da realidade que tentará fortemente resistir a qualquer esforço de se mudar a cidade e a sociedade em um rumo mais democrático e justo.
Creio ser daí, justamente, a mola incentivadora da mudança!
Oportunidade na crise?
Dentro do ideário neoliberal, mas não só dele, tem-se uma ideia de serem as crises momentos propícios para se desenvolverem oportunidades para a superação das dificuldades. Romantizando-as dessa forma.
Longe de se apoiar em um ufanismo otimista que isenta e não reconhece os fatores reais e estruturais que levaram ao surgimento do indesejável (aumentando, por isso, a chance de repeti-lo), o que se procura aqui é reconhecer a inevitabilidade de, na atualidade, utilizar o presente para a reconstrução de um futuro mais propício e uma realidade urbana.
Não existe outra opção!!
Frente a um cenário aterrorizador aqui apresentado e verificado tanto em ações e situações concretas como em um imaginário cada vez mais contaminado por pautas reacionárias [5], cabe sugerir e investigar possibilidades de atuação que permitam criar, ao menos, condições para que um novo patamar de desenvolvimento urbano seja desenvolvido.
É evidente, mas importante dizer, que qualquer medida aqui mencionada tem como premissa uma alteração no poder central a partir do próximo ano. Caso contrário, acredita-se instalar um cenário profundamente desanimador com correlações de força que, mais que impedir qualquer transformação progressista, representarão a chance real de implantação de uma realidade ainda mais reacionária e atrasada.
Creio que o ambiente contrário às mudanças citado anteriormente possa servir, aparentemente de forma contraditória, como marco inicial para um momento de transformação.
No período dos governos Lula (2003-2010) e Dilma Rousseff (2011-2016), reconhecidamente um período de avanços nas pautas urbanas democráticas, foram constantes os momentos onde não se avançava justamente por se acreditar que, naquela fase, dever-se-ia aguardar para não trazer à tona um sentimento ainda mais conservador e reacionário.
Não devemos, dessa forma, temer esse momento… ele já chegou e está aí, tão presente e atuante que se descuidarmos como sociedade, teremos mais um presidente do Brasil reeleito com consequências previsivelmente nefastas.
Tornamo-nos livres assim para poder ousar!!
Sejamos realistas, exijamos o impossível
O mantra dos anos de 1960, largamente utilizado no processo de contracultura, não espelha com sinceridade o que se propõe nesse artigo, pois aqui não se está exigindo o impossível.
A crise instalada permite, quase nos obriga, no caso da mobilidade, pensar outras formas de obtenção desse serviço, enquadrado segundo a própria Constituição Federal, como público e essencial.
Do desinteresse dos operadores privados, à pressão pela implantação e ampliação dos subsídios ao transporte coletivo, a urgência de resolução dessa questão e todo um conjunto de fatores leva inevitavelmente a colocar em pauta modelos de operação do transporte abandonados e não retomados nas últimas décadas.
A tarifa zero (ou o subsídio parcial), em um contexto de incapacidade de fiscalização do operador privado, traz a discussão da operação pública ou, ao menos, a implantação de um modelo híbrido que, se concessionado fracionando alguns dos elementos que compõem o sistema (frota, mão de obra ou bilhetagem), permite que o Estado não perca o protagonismo e a capacidade de planejamento do sistema.
“Queremos tudo e queremos tudo agora” para citar outro lema utilizado na década de 1960, aqui, não é por acaso. O que se almeja é a tarifa zero com operação pública (total ou parcial)!
Como complemento, a implantação da mobilidade ativa e da utilização de meios não motorizados podem e devem ser alcançadas, sobretudo, em cidades mais compactas.
O modelo de “periferização”, que foi vital para a tendência de colapso no transporte aqui comentada, obriga também que uma nova postura sobre a regulação territorial seja testada.
Fala-se aqui de um protagonismo estatal condizente com o papel a ser exigido por esse agente e a retomada da participação social em todo o processo, objetivando com isso uma real ampliação no controle do território.
Esse controle, por sua vez, visa contrapor um modelo imperante no Brasil de, por um lado, um crescimento centrado em uma periferização precária, com ampliação contínua da mancha urbana, não raro com alterações legais [6] que aumentam o perímetro urbano e, por outro, reproduzem a proliferação de condomínios.
Nesse segundo caso, também a alteração da legislação é comumente realizada no sentido de se permitir um adensamento exacerbado, materializando-se no modelo de 4 torres, com vinte e três pisos e quatro unidades por andar. No térreo, de acordo com o estrato social do público alvo, oferta-se “40 itens de lazer” ou menos, mas nem sempre exatamente entregues.
O problema desse modelo reside, principalmente, para além da estratificação social que traz inexoravelmente, na ruptura que constrói no tecido urbano, fragmentando-o e encarecendo as estruturas urbanas a serem implantadas, sobretudo a de transporte, seja pela indução à pendularidade, seja pelo aumento da extensão quilométrica do sistema.
Enfim, há que se buscar com esse controle uma situação que incentive e possibilite uma densidade adequada que, fora dos grandes eixos de mobilidade, apresente a implantação de alguns pisos (que variam segundo o contexto de cada cidade) e um térreo que dialogue com seu entorno, seja pela ausência de muitos que envolvem os “40 itens de lazer”, seja pela adoção de outros usos nesses locais.
Também o controle urbano exigido deve caminhar no sentido de se permitir a instalação e o convívio, de forma harmônica, de diferentes estratos sociais da sociedade no mesmo território.
A adoção de cotas de solidariedade (modelo francês atenuado nas raras aplicações no Brasil) deve ser pensada a fim de se garantir esse fato.
Também não se pode descartar, sobretudo nos centros urbanos mais consolidados, a disponibilização de imóveis construídos e desocupados para a implantação de moradias de interesse social e mercado popular.
Além da questão social, essas medidas visam uma racionalização da utilização das infraestruturas urbanas já previamente disponíveis nesse local.
Essa bandeira deve ser vista como prioritária no debate sobre o direito à cidade no próximo período.
Nas periferias consolidadas, há que se ter um esforço de se levar equipamento públicos que, por sua vez, induzam a instalação de centralidades, atenuando a pendularização dos deslocamentos.
Em suma, o que se propõe, parafraseando a ideia da “muita gente sem casa e muita casa sem gente”, é levar cidade onde se tem gente e gente (independentemente de sua capacidade de consumo) onde tem cidade.
Isso significa que é imperativo contrariar a dinâmica mercantil imposta no desenvolvimento urbano em um momento, conforme mencionado anteriormente, em que processos como a financeirização da indústria imobiliária ganha assustadoramente força nesse processo.
Nada será realizado sem que o aparato estatal ganhe força e agilidade e isso também significa uma reforma drástica na estrutura interna do estado, mas isso não significa a perda de direitos defendida pelo modelo neoliberal.
Deve-se adaptar as estruturas para esse desafio, com processos contínuos de formação e aprimoramento do corpo técnico e o preenchimento de vagas prioritariamente ocorrendo por carreiras de estado.
Talvez essa medida contrarie, tanto quanto outras, uma tendência de desmonte e descrédito imperante.
Talvez para a mínima chance de implantação daquilo que aqui se propôs será necessário primeiramente uma mudança de mentalidade, profunda e radical, e, aparentemente, distante dos sombrios dias atuais.
Talvez essas indagações sejam todas verdadeiras. Mas talvez esse seja o caminho possível para uma construção de cidades mais justas, democráticas, participativas, includentes e felizes.
Referências Bibliográficas
– FERREIRA, J. S. W.; Produzir casas ou construir cidades? Desafios para um novo brasil urbano. São Paulo: FUPAM, 2012.
– MOURA, G. J. C. & VIEIRA, G.; “Não me mande para Cuba, me mande para a França (ou para a Holanda) – bases urbanísticas para o Estatuto da Cidade”. 2018. Disponível em: <https:// https://planmur.com.br/?p=995>. Acesso em: 24 de ago. de 2022.
– ROLNIK, R.; Guerra dos Lugares. São Paulo: Editora Boitempo, 2019.
– SANTOS, M.; O Espaço do Cidadão. São Paulo: Edusp., 2000.
– VILLAÇA, F.; Espaço intra-urbano no Brasil. São Paulo: Studio Nobel, 2000.
Geraldo José Calmon de Moura: Possui graduação em Arquitetura e Urbanismo pela Pontifícia Universidade Católica de Campinas (1998), graduação em Ciências Sociais pela Universidade Estadual de Campinas (2002), mestrado em Geografia pela Universidade Estadual de Campinas (2005) e Doutorado em Planejamento Urbano e Regional pela Universidade de São Paulo (2016). Foi Diretor de Planejamento e Projetos em Guarulhos (2004-2008), Secretário Adjunto de Transportes e Vias Públicas em São Bernardo do Campo (2009-2010), onde coordenou o Programa de Transporte Urbano com financiamento do Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID) e Gerente de Projetos na TTC Engenharia (2011). Atuou ainda como Especialista Técnico (National Technical Advisor) pela Associação Nacional de Transportes Públicos (ANTP) no Programa GEF Sustainable Transport and Air Quality Program (2010-2015) do Banco Mundial. Atualmente é sócio proprietário da Planmur – Planejamento. Mobilidade e Urbanismo, integra a diretoria do Ruaviva – Instituto da Mobilidade Sustentável e é Professor de Urbanismo da Universidade Anhembi-Morumbi.
[1] Fala-se aqui objetivamente de ações como a perda de atribuições da pasta do Meio Ambiente; a redução da participação da sociedade civil e a flexibilização da fiscalização ambiental; a transferência do Serviço Florestal Brasileiro para o Ministério da Agricultura (MP 870/19); a transferência da Agência Nacional das Águas para o Ministério de Desenvolvimento Regional (MP 870/19); a reestruturação do Conama (Conselho Nacional do Meio Ambiente) (decreto n. 9.806/19); a extinção dos colegiados do Fundo Amazônia (decreto n. 9.759/19); a flexibilização da Lei da Mata Atlântica (despacho n. 4.410/20 do Ministério do Meio Ambiente); o Projeto de lei 2.633/20, derivado da MP 910 de 10 de dezembro de 2019, que dispõe sobre a regularização fundiária das ocupações incidentes em terras situadas em áreas da União, que pode permitir a grileiros a legalização de terras apropriadas ilegalmente (PL n. 2.633/20, derivado da MP 910/19); a flexibilização nas contrapartidas ambientais e, por fim, a tentativa exitosa de flexibilização do próprio licenciamento ambiental.
[2] Ver https://www.epsjv.fiocruz.br/noticias/reportagem/invasao-do-garimpo-em-terras-indigenas-deixa-rastro-de-desmatamento-e-violencia
[3] Durante o Governo Temer, o enquadramento da Faixa 1 no Programa MCMV é extinto e substituído pelo novo patamar 1,5, o que estabelecia como padrão mínimo de financiamento, na prática, uma renda familiar de 4,5 salários mínimos.
[4] O Programa Casa Verde Amarela, no Governo Jair Bolsonaro, manteve o aspecto excludente já verificado em Michel Temer.
[5] Adota-se aqui o termo “reacionário” para não se confundir com a ideia de conservadorismo presente em autores como Edmund Burke
[6] Muitas vezes realizadas e sessões parlamentares noturnas e esvaziadas, em vésperas de datas importantes e sem a devida discussão e participação social.