Dennis de Oliveira e Joselicio Junior
Desde o golpe parlamentar-midiático-judicial de 2016 e passando pelo governo de extrema direita de Bolsonaro, a população negra brasileira foi a mais impactada pelo desmonte das políticas públicas e pela crise social. Os pequenos avanços conquistados durante o ciclo dos governos liderados pelo PT se esvaíram. O mais importante e instigante destes retrocessos é que eles ocorreram sem necessariamente ter havido um desmonte total dos marcos institucionais conquistados a partir da Constituição de 1988. Isto traz como desafio para o movimento social de negros a necessidade de se transcender a discussão dos marcos institucionais e regulatórios para a efetivação de políticas que enfrentem a raiz dos problemas da maioria da população negra.
Desde o período da redemocratização do país, no final dos anos 1980, o movimento social de negros busca incidir na agenda política. A fundação do Movimento Unificado contra a Discriminação Racial (MUCDR, depois MNU – Movimento Negro Unificado) trouxe para a agenda política uma leitura diferenciada do significado do sistema de repressão policial. Os aparatos de segurança militarizados serviam tanto para reprimir os opositores da ditadura militar, como também a população negra da periferia. O assassinato do trabalhador negro Robson Silveira da Luz por policiais foi um dos motivos do ato, realizado em 1978, nas escadarias do Teatro Municipal de São Paulo, e que fundou o MNU. A partir daí, o movimento negro foi denunciando a tática singular das forças policiais contra a população negra: prisões, torturas e assassinatos motivados pela cor da pele e legitimados por flagrantes forjados.
Ora, o que esta agenda colocava para o movimento pela democratização daquele momento? A necessidade de se reestruturar todo o sistema de segurança pública, a política de encarceramento, a desmilitarização das polícias, entre outros. Porém, a transição de acordos realizada no final dos anos 1980 não contemplou esta agenda. E isto ficou demonstrado pela manutenção da mesma estrutura institucional de segurança pública. Se a democracia “despartidarizou” este sistema policial, ela não o “despolitizou”, pois a ideia de um “inimigo interno” se manteve, apenas se deslocando dos opositores à ditadura para a população negra da periferia. O documento da Escola Superior de Guerra, de 1988, intitulado “Estrutura para o Poder Nacional no século XXI”, comprova isto ao apontar que os cinturões de miséria e os “menores” abandonados eram os novos focos desestabilizadores do sistema.
É fato que houve avanços no texto constitucional de 1988, em particular a tipificação do racismo como crime inafiançável e imprescritível e o reconhecimento das terras de comunidades remanescentes de quilombos. E que o clima democrático daquele ano, que coincide com o centésimo aniversário da abolição, permitiu que o movimento negro brasileiro avançasse no sentido de denunciar o caráter inconcluso da abolição e a necessidade de políticas públicas para a superação do racismo.
A pactuação democrática de 1988 incorporava a demanda por políticas públicas. Mas tragicamente havia uma coincidência de agendas com o avanço global do neoliberalismo, potencializado com a queda dos regimes do Leste Europeu. Desde a vitória da direita, em 1989, o confronto entre o ajuste econômico neoliberal e a consolidação de uma agenda de políticas públicas foi a tônica. E o movimento negro, historicamente atuante nas lutas por educação, saúde, moradia, reforma agrária, entre outras, apontou corretamente como o neoliberalismo é um projeto de intensificação do racismo, particularmente no processo de preparação e realização do I Encontro Nacional de Entidades Negras (Enem), em São Paulo, em 1991. O neoliberalismo significa o extermínio programado da população negra e periférica – foi essa a conclusão deste encontro.
Já durante a construção da Marcha da Consciência Negra de 1995, quando se celebrou o tricentenário de Zumbi dos Palmares, esta agenda do movimento negro consolida a reflexão da necessidade de se articular a luta pelas políticas públicas generalistas à agenda das ações afirmativas. As pesquisas realizadas pelo IPEA (Instituto de Pesquisas Econômicas Aplicadas), coordenadas pelo professor Ricardo Henriques, mostravam a diferença constante entre brancos e negros em todos os indicadores sociais em contextos socioeconômicos distintos na história brasileira. Uma diferença que se expressava como duas retas paralelas e que só poderia ser enfrentada com um mix de políticas generalistas e específicas.
Entre 1995 e 2001, ocorre o processo preparatório para a Conferência de Combate ao Racismo de Durban. Neste processo, esta agenda combinada de políticas generalistas e específicas consubstanciou-se como uma perspectiva política de enfrentamento tanto a uma visão ainda eivada do mito da “democracia racial” (de que basta apenas melhorar os indicadores sociais no geral para acabar com o racismo, ou que o problema do racismo é apenas uma “manifestação” da opressão de classe) como também ao conceito neoliberal de políticas focalizadas (que combina a defesa do “Estado mínimo”, portanto de desmonte dos aparatos de proteção social, com a constituição de políticas focalizadas apenas em alguns setores, base para uma corrente chamada por Nancy Fraser de “neoliberalismo progressista”).
Este acúmulo político do movimento negro brasileiro sinalizava para uma mudança nos arranjos institucionais do Estado brasileiro. A necessidade de políticas públicas específicas para a população negra combinada com a constituição de um aparato de segurança social para todos sinalizava para esta mudança. É por conta disto que o movimento negro, na passagem do segundo para o terceiro milênio, reforça sua bandeira de constituir espaços específicos dentro do aparato de Estado para se pensar estas políticas específicas.
Tal embate teve uma primeira conquista em 1988 com a criação da Fundação Cultural Palmares, mas ainda restrita ao universo da cultura. A complexidade do universo de campos em que se deveria atuar para combater o racismo foi o argumento em que se baseou a luta pela criação da Seppir (Secretaria Especial de Políticas de Promoção da Igualdade Racial) com status de ministério, em 2003. Já era o início dos governos do ciclo do PT.
A partir daí, houve um avanço importante nos marcos regulatórios e institucionais de combate ao racismo no Brasil. Surgem as Leis 10639/03 e 11645/08 (que tornam obrigatório o ensino da temática africana, afrobrasileira e indigena nas escolas), Lei de Cotas, Estatuto da Igualdade Racial, Programas de Saúde da Mulher Negra, entre outras. A partir da Seppir, é criado em 2008 o SINAPIR (Sistema Nacional de Promoção da Igualdade Racial), que articulava entes federativos (União, estados e municípios) para se constituir políticas de combate ao racismo. Conferências e conselhos participativos são instituídos e a agenda antirracista contamina a dinâmica das instituições governamentais.
Entretanto, problemas estruturais do racismo continuaram: encarceramento em massa de jovens negros e negras, genocídio da juventude negra, desemprego e precarização no trabalho maior entre negras e negros. Os próprios arranjos institucionais específicos para negros eram mais frágeis, com orçamentos irrisórios, dificuldade de implantação, entre outros.
Em função deste cenário, quando se chega ao golpe de 2016 e posteriormente ao governo Bolsonaro, assistiu-se algo muito singular: a destruição dos poucos avanços sociais da população negra neste período, sem necessariamente desmontar o arcabouço institucional construído recentemente. Toda a legislação conquistada não foi revogada, alguns órgãos, como a Fundação Palmares, continuaram existindo e até mesmo conferências e conselhos continuaram existindo. Em 2018, já no governo golpista de Michel Temer, foi realizada a IV Conferência Nacional de Igualdade Racial. Mas cabe também registrar que a Seppir perdeu seu status de ministério não no governo golpista ou sob Bolsonaro, mas ainda no governo Dilma Rousseff, do ciclo petista.
É fundamental observar os impactos das políticas públicas na população negra, vítima de desassistência
As cotas raciais nas universidades públicas se mantiveram. Mas estas instituições foram sucateadas. A tragédia social dos anos 2020 e 2021 (anos da pandemia do Covid-19) aumentou ainda mais a evasão escolar de alunos negros e negras. Muitos jovens negros evadiram do ensino superior em busca de trabalho. E o discurso belicista do governo Bolsonaro intensificou ainda mais a repressão policial.
Como bem apontou Fábio Nogueira, analisando os governos Lula e Dilma, é fundamental observar os impactos das políticas públicas na população negra para além das ações da própria Seppir, mas também observando o Bolsa Família, a valorização do salário mínimo, o programa “Minha casa, Minha Vida”, a PEC das domésticas, as cotas nas universidades, o ProUni, a expansão das Universidades e Institutos Federais.
Quando das articulações para o golpe parlamentar-midiático contra a presidenta Dilma, comentamos no artigo intitulado ‘O golpe contra Dilma é racista’ que “73% dos beneficiários do Bolsa Família são negros e que 68% das famílias beneficiadas são chefiadas por mulheres negras. E também que 80% dos beneficiários do programa ‘Água para Todos’ (construção de cisternas) são negros. No Programa Luz para Todos, o percentual de negros entre os beneficiários é também de 80%. No Pronatec, 68% das matrículas contabilizadas em 2014 eram de jovens negros. O Programa “Minha Casa, Minha Vida” tem, entre os seus contemplados, 70% de famílias negras.”
Esse olhar panorâmico nos permite observar aspectos importantes, dentre eles que diante de um governo reacionário, como o de Bolsonaro, você pode manter estruturas institucionais como a Fundação Palmares, manter leis como as cotas, ou leis de ensino da cultura e história africana, afro-brasileira e indígena e, ao mesmo tempo, ter uma grande piora nas condições socioeconômicas da população negra.
Portanto, uma agenda do movimento social negro não deve se pautar apenas por marcos institucionais representativos descolados de uma agenda econômica e social mais ampla. A articulação raça, gênero e classe é o principal motor da luta política no país. O projeto capitaneado pelo bolsonarismo se faz na negação da possibilidade de um projeto nacional de ampla inclusão de mulheres negras e pobres. A tragédia da pandemia e a grave crise econômica pela qual passamos são expressões disso. Diante disto, a perspectiva para a população negra na superação desta situação é transcender a agenda da mera ocupação institucional. É preciso ir além, enfrentar as raízes dos gargalos sociais para transformar esta ocupação em uma ação substantiva.
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Dennis de Oliveira é professor associado da Escola de Comunicações e Artes da USP, jornalista, coordenador da Rede Antirracista Quilombação. Autor de “Racismo estrutural: uma perspectiva histórico-crítica” (Ed. Dandara, 2021)
Joselicio Junior é jornalista, mestrando no Programa Mudança Social e Participação Política, Diretor Editorial Dandara Editoria.