Glauber Braga
Para o parlamentar do PSOL, a economia privada “precisa do estímulo do desemprego elevado para facilitar o seu processo de negociação com os trabalhadores” O objetivo é “domesticar a força de trabalho”.
Francisvaldo Mendes Gilberto Maringoni
“Eduardo Cunha, você é um gangster. O que dá sustentação à sua cadeira cheira a enxofre. Eu voto por aqueles que nunca escolheram o lado fácil da história. Voto por Marighella, por Plinio de Arruda Sampaio, por Luís Carlos Prestes, eu voto por Olga Benário, eu voto por Zumbi dos Palmares, eu voto não!” As palavras acima viralizaram por todas as redes e mídias na dramática noite de 17 de abril de 2016. Quem as pronunciou ao microfone, na tumultuada sessão que selou o impeachment da presidenta Dilma Rousseff, foi um deputado federal até então pouco conhecido além das divisas de seu estado natal, o Rio de Janeiro. A partir dali o nome de Glauber Braga, então com 34 anos, tornou-se nacionalmente conhecido. A incessante e corajosa atividade parlamentar granjeou ódio por parte da direita e admiração e apoios crescentes nos setores populares.
Nesta entrevista à Socialismo e Liberdade, Glauber fala da situação nacional, do avanço da extrema direita e da necessidade de a esquerda se voltar aos problemas reais da vida do povo, como emprego, salário e sobrevivência nesses duros tempos de Bolsonaro. Como o senhor analisa o primeiro ano do governo Bolsonaro? O momento é de preocupação com o avanço da direita, mas não nos lamentarmos. É necessário organizar a luta para enfrentar os pilares de sustentação do governo de Jair Bolsonaro. Esses pilares são, prioritariamente, três. Em primeiro, está o pilar econômico, a agenda ultraliberal, colocada em prática com o desmonte do Estado brasileiro no conjunto das suas garantias sociais, numa ação que subordina os interesses de um desenvolvimento próprio do Brasil aos interesses de grandes corporações e de outros Estados Nacionais – sobretudo, a adesão que faz o governo Bolsonaro ao governo Donald Trump. A segunda estrutura, é a ampliação do Estado penal, policial e punitivo, que tem como principal figura pública Sérgio Moro. E a terceira estruturação é a dos chamados capítulos ideológicos que tem como principal figura pública Olavo de Carvalho, além dos próprios filhos do presidente, da ministra Damares Alves e do ministro da Educação, Abraham Weintraub.
Na votação do impeachment, o senhor enfrentou o ex-presidente da Câmara Eduardo Cunha, chamando-o de gângster. Há semelhanças entre Cunha e Bolsonaro? Eles buscam objetivos parecidos, com características bem diferentes. Cunha trabalhava na política de atacado, comprando parlamentares, apoio político e fazendo negócios com todo tipo de ação governamental, por meio do poder como deputado federal. Agora, estamos falando de uma família que tem relações estreitas com a milícia do estado do Rio de Janeiro e que, propagando uma “nova política”, exibe as mesmas práticas de fortalecimento da política do “toma lá, dá cá” no varejo. A diferença é o fortalecimento de forças paramilitares. Aquilo que se apresentava como suspeita se transformou em uma realidade concreta. Há provas de que o representante do Escritório do Crime, atualmente foragido, nomeou a ex-companheira e a mãe no gabinete de Flávio Bolsonaro. Este alega que a iniciativa foi do Queiroz, que serviu com esse mesmo agente, que seria o Escritório do Crime. Estamos falando de uma família com relações estreitas com a milícia. Portanto, o objetivo patrimonial e financeiro é parecido, mas as características da política de Eduardo Cunha e de Jair Bolsonaro são diferentes.
Nunca tivemos o crime organizado entranhado na estrutura do Estado, tal como agora. O que isso muda na política brasileira e na relação com a sociedade? Muda muito. Aquilo que o estado do Rio de Janeiro já viu – uma política baseada na dominação de territórios e na eliminação física de adversários – ganha uma dimensão nacional, com a força da presidência da República. Dos quatro parlamentares do PSOL pelo estado do Rio, três tiveram ameaças formalizadas, o que pede uma escolta permanente. Olhe o que é a representação disso na violência política. Veja a execução de Marielle e de Anderson. Essa turma ganhou poder nacional. E isso faz com que eles, o tempo inteiro, ampliem o poder e façam ameaças de fechamento de regime, contando com essas forças milicianas ao seu redor.
Por que o governo e seus apoiadores voltam e meia ameaçam com uma volta à ditadura? Essas ameaças são testes. O bolsonarimo que está mais ligada ao alavismo não tem dificuldade alguma em exercer sua força para que esse fechamento seja realizado. Ao mesmo tempo, acho que não podemos cair em uma armadilha. Uma parte daqueles que se apresentam como uma direita mais domesticada, ou mais racional, joga o que seria a boia de salvação para toda a sociedade brasileira contra o fechamento de regime. Com isso, gera uma cortina de fumaça para continuar tocando a política de desmonte do Estado, de privatizações, de demonização do funcionalismo público, de entrega das reservas de petróleo, de entrega do sistema elétrico brasileiro. Não podemos ter uma política que seja menos contundente com figuras como Rodrigo Maia e companhia. Elas tocam semanalmente, na Câmara dos Deputados, essa política de desmonte do Estado nas garantias sociais, com a implementação da agenda ultraliberal. Se, em determinado momento, temos alianças um pouco mais amplas contra o fechamento de regime, isso não pode ser um sinônimo de não fazer o enfrentamento necessário àqueles que são representantes de uma política de submissão do Brasil e de terra arrasada no que diz respeito a direitos e garantias sociais – aqueles que se apresentam como a direita domesticada.
Outro fato novo é o governo contar com apoio de alguns integrantes das Forças Armadas. Na sua opinião, existe essa aliança entre governo e Forças Armadas? Existe, mas acho que precisamos colocar elementos novos. O primeiro foi o racha acontecido nas Forças Armadas a partir da política do próprio Jair Bolsonaro. Ele priorizou a defesa dos interesses de quem está no topo da hierarquia, dos oficiais, e excluiu garantias e direitos de quem está na base. A previdência dos militares foi o primeiro grande baque na hegemonia que Bolsonaro sempre teve, pelo menos nas últimas eleições, no interior das Forças Armadas. Ele privilegia quem está no topo, como os que compõem o ministério. Os da base ficam submetidos a uma política regressiva e de perda de rendimentos. A maioria dos militares não está no topo da hierarquia. Numericamente, estamos falando de 80% deles, que estão na base e que não são, necessariamente, oficiais. Ao mesmo tempo, parte significativa dos militares não embarca no governo por considerar o gesto uma aventura. Um exemplo disso são as ameaças que Eduardo Bolsonaro faz de uma guerra contra a Venezuela. Parte significativa dos militares não entram nessa aventura, inclusive por pragmatismo, porque sabem que a entrada numa guerra tem consequência incalculáveis para o Brasil. Essa aliança é inegável, mas ela já foi mais forte e mais homogênea.
A grande mídia ataca o governo e a política institucional, mas apoia a agenda econômica. . Por quê? Alguém tem dúvida que o lavajatismo fortaleceu o bolsonarismo? Eu não tenho nenhuma dúvida. Esses mesmos veículos que fortaleceram o lavajatismo e, consequentemente o bolsonarismo, agora procuram estabelecer limites para o próprio bolsonarismo. Mas não abandonam por completo figuras como Sergio Moro e companhia. Na minha avaliação, é um movimento dúbio. Inclusive, porque a agenda lavajatista de ampliação do Estado penal, policial e punitivo é funcional para a agenda ultraliberal, que é extremamente impopular. Recentemente, fui fazer um bate-papo com estudantes em Acari, bairro do Rio de Janeiro. Eu perguntava sobre as medidas adotadas ainda pelo governo Temer. Reforma da Previdência? Todo mundo era contra. Reforma trabalhista? Todos contra. Privatizações? Contra. O Temer, se chegas – se ali, não conseguiria sair. E aí surge, no decorrer da conversa, uma discussão sobre mandados coletivos de busca e apreensão, ou autorização judicial para entrar em várias residências ao mesmo tempo. Nesse momento, o pessoal rachou. Metade era a favor e metade era contra. E nós estávamos em uma comunidade que sofre as consequências desse tipo de medida judicial. Essa agenda punitivista atravessa o imaginário brasileiro com muita força. Quando se tem uma agenda extremamente impopular, é preciso equilibrar esse jogo com uma agenda que, necessariamente, seja mais popular. O lavajatismo e a agenda de ampliação do Estado policial servem, também, para a agenda da ampliação do desmonte, com a pauta ultraliberal, ao desfocar, muitas vezes, aquilo que é uma agenda que, se dependesse exclusivamente do povo, seria rejeitada majoritariamente. Estão aí as pesquisas de opinião mostrando que a maioria do povo brasileiro é contra rodadas de privatização. A cada dez brasileiros, de seis a sete se manifestam contra privatizações. A agenda do Estado policial vem para equilibrar isso. Então, parte desses segmentos que tentam impor limites ao bolsonarismo continua estimulando essa agenda que fortalece o governo.
Por que a esquerda não conseguiu ter um projeto de segurança alternativo? Precisamos fazer uma autocrítica. A esquerda se esconde dessa discussão. Não existe batalha que seja vencida se ela não for disputada. Se tem uma votação de ampliação de pena no plenário da Câmara dos Deputados, conta-se nos dedos os parla – mentares que vão fazer o enfrentamento a esse tipo de agenda. Se você fica com medo de uma discussão porque ela é impopular, você já perdeu, porque o adversário vai ter uma profunda capacidade de te enquadrar. Temos de fazer enfrentamentos onde não temos maioria social. Um exemplo é a presunção de inocência e dos julgamentos em segunda instância. Temos que fazer essa disputa e mostrar o que ocorre: há mais de um milhão de pessoas passando pelas unidades prisionais por ano. E o sentimento de insegurança social só se amplia. Nós temos propostas em relação à segurança pública? Temos. E precisamos fazer um enfrentamento que se contraponha à agenda de ampliação do Estado penal, policial punitivo total com a apresentação daquelas que são as nossas propostas. Como esquerda, não devemos ter dificuldade de discutir, por exemplo, ampliação do controle de fronteiras no que diz respeito à circulação de armamento no território nacional, política que é constantemente desmontada pelos governos de plantão – Temer, Bolsonaro e companhia. Veja um exemplo: o Rio de Janeiro não tem fábricas de fuzis. Todo mundo fala da entrada desse tipo de arma pela baía de Guanabara. Muitos dos que facilitam essa entrada podem estar ligados e relacionados aos poderes, como se viu com a prisão daquele que seria o executor de Marielle, o Ronnie Lessa. Ele possuía uma grande quantidade de fuzis. E mais, não dá para discutir diminuição de violência no Brasil sem discutir as unidades prisionais brasileiras. Apresentei uma proposta que cria um Plano Nacional de Educação nas unidades prisionais, atuando diretamente sobre a política de hiper encarceramento. A proposta trabalha a remissão, mas ao mesmo tempo, trabalha alternativas para a garantia de direito de quem está nas unidades. É algo óbvio: se não houver direitos para os encarcerados, quando essa pessoa sair da unidade prisional, haverá um fortalecimento da espiral da violência. Não dá para se discutir uma política de segurança sem tocar em um assunto tabu, que é a política de drogas. Um exemplo internacional a ser lembrado é o de Portugal. Lá se faz uma discussão sobre o uso abusivo de drogas como questão de saúde pública, e não como aqui, uma política de ampliação do controle das comunidades periféricas, com o genocídio da população negra. O argumento é que assim se controla a droga, o que não é verdadeiro. Além disso, é inadmissível que o Brasil não tenha um plano nacional de redução de homicídios, se temos mais de 60 mil pessoas assassinadas por ano. Nós temos, sim, propostas. Não podemos ter medo de enfrentar a ultradireita, que repete as práticas que já não deram certo e que só ampliam a política de violência no nosso país. Isso serve muito bem para eleger deputado bolsonarista, mas serve muito pouco para se reduzir a violência.
Embora os indicadores falem em 13% de desemprego no Brasil, com a precarização, com a difusão do bico e com o trabalho intermitente, esse índice mais do que dobra, alcançando mais de 40% da população. O senhor apresentou um projeto para se atingir o pleno emprego no país. Qual é a ideia central? Fizemos uma discussão com economistas da liderança do PSOL e estabelecemos o emprego não um favor do mercado, mas um direito a ser garantido, que inclusive está na Constituição. E colocamos o Estado como o empregador de última instância. A proposta cria um fundo gerido prioritariamente por trabalhadores e por segmentos da sociedade civil organizada, direcionado para a garantia do emprego. Ele se diferencia de políticas de renda mínima, que já contam com propostas apresentadas, porque dá um foco às pessoas que estão desempregadas, garantindo, pelo menos, um salário mínimo de rendimento a cada uma e será operacionalizado com recursos do orçamento da União.
E existem recursos para isso? Se o tipo de prioridade orçamentária que temos hoje for mantida, de fato, não teremos recursos. Mas estamos trabalhando com uma lógica que modifique as prioridades. Estamos falando de 2% do PIB brasileiro para, aproximadamente, os 13 milhões de desempregados que temos hoje. Se formos fazer uma comparação com o que se paga de juros, sem entrar na lógica ou na discussão da demonização ou não do pagamento da dívida, destinamos em torno de 6% do PIB para juros e amortização. E aqui estamos falando de 2% para uma política que seria de pleno emprego! Nossa proposta, objetivamente, é a seguinte: avalia-se que, em um determinado município do Nordeste brasileiro, haja 20% de desempregados. Então, nesse município, o fundo se voltaria para garantir emprego para esses desempregados. O projeto foi atacadíssimo por pensadores e políticos ultraliberais. É curioso. Se é algo extremamente absurdo e que não mereça nenhum tipo de atenção, não se deveria criticar. Mas a proposta não está isolada. Uma parte daqueles que trabalham na campanha do Bernie Sanders vêm apresentando sugestões parecidas a essa. Existe um programa semelhante na Índia, reconhecido pelo Banco Mundial. A ideia central, repito, é tratar o emprego como um direito garantido, e não como um favor do mercado. Mas o mercado não aceita isso porque precisa do estímulo do desemprego elevado para facilitar o processo de “negociação” com os trabalhadores, aquilo que eles chamam de “domesticação da força de trabalho”.
Essa proposta é possível com a vigência da Emenda Constitucional 95, a do teto de gastos? É impossível. Por isso, no texto da proposta, defendemos a revogação da Emenda Constitucional que estabeleceu um teto de gastos. Isso não existe em nenhum lugar do mundo e reduz recursos voltados para direitos e garantias sociais, que serão drenados para o pagamento de juros, amortização da dívida. Além disso, facilitam a entrada do setor privado em áreas como educação e saúde.
As forças democráticas e de esquerda podem atuar conjuntamente no Congresso? Precisamos ter frentes de resistência ao projeto bolsonarista. Frente parlamentar, frente social e frente dos movimentos. Agora, a viabilização disso como uma ação eleitoral, na minha opinião, tem que estar baseada em programas municipais de enfrentamento às agendas ultraliberais. Isso implica oposição ao processo de privatização da água no Brasil, para a defesa da escola pública e para que se impeça o reacionarismo de sufocar o pensamento crítico. Não podemos perder nossa radicalidade, no sentido de irmos à raiz dos problemas. Não podemos ter, numa eleição municipal, medo de falar em socialismo. Mas precisamos conseguir falar em socialismo fazendo essa discussão combinada com a vida real das pessoas.