Luiz Arnaldo Campos
Na noite de 3 de novembro de 2020, um temporal castigava Macapá, capital do estado, quando uma explosão foi ouvida por muitas pessoas. Chamas subiram aos céus enquanto a cidade mergulhava no escuro. Tinha início o drama, que passou a ser conhecido como o apagão do Amapá, uma tragédia com muitos atos e um final inesperado.
A abertura foi um blecaute total em 13 dos 16 municípios que compõem o estado. A falta de energia elétrica trouxe consigo a escuridão, nuvens de mosquitos, falta da água, colapso da internet, do WhatsApp, fechamento das agências bancárias, caixas eletrônicos, postos de gasolina e a perda de alimentos que precisavam de uma geladeira para serem conservados. Na tarde do dia seguinte, muitas famílias macapaenses se dirigiram para o rio Amazonas, que banha a cidade, e aos igarapés para tomar banho e se assearem. À noite, na cidade às escuras, brilharam as tochas que iluminavam as barricadas de moradores indignados, protestando contra o descaso das autoridades, em plena campanha eleitora
Primeiro ato
Nos três primeiros dias sem energia elétrica, pulularam as versões sobre o que teria acontecido. A mais divulgada era de que um raio caíra sobre a subestação de energia da capital, causando todo o estrago. Essa versão foi insistentemente proclamada por um conjunto de forças que se alinhavam atrás da candidatura superficial de Josiel Alcolumbre (DEM) a prefeito de Macapá. Josiel, um rico empresário, dono da repetidora da Rede Bandeirantes no estado, é irmão de Davi Alcolumbre, presidente do senado e aliado de Bolsonaro. Além do apoio familiar era também carregado pelo governador Waldez Góes (PDT) e pelo prefeito da capital, Clécio Luís (sem partido).
A versão do raio divino ocupou boa parte dos programas eleitorais da situação, já que mesmo sem luz elétrica, o horário eleitoral gratuito continuou sendo transmitido, embora praticamente sem espectadores. Nesses programas, a candidata a vice de Josiel, doutora Silvana, aparecia responsabilizando os “fenômenos da natureza”, procurando limpar a barra dos governos federal e estadual, aliados de primeira hora de Josiel. Não conseguiu. Não demorou muitos dias para a Polícia Civil divulgar um laudo que isentava as forças celestes de qualquer responsabilidade. O para-raios da subestação funcionava perfeitamente durante a tormenta.
Enquanto à noite a tensão nas ruas aumentava com policiais tentando dissolver as barricadas, inclusive com balas de borracha. À luz do sol, iam se avolumando os indícios sobre as responsabilidades pelo desastre. Veio à tona a informação de que as péssimas condições da subestação tinham sido a origem da explosão que destruiu um transformador e incendiou outro. Deveria haver um terceiro, exatamente para funcionar como reserva. No entanto, encontrava-se em manutenção desde 2019. Em meio ao sofrimento dos amapaenses, já atormentados com um repique da epidemia do coronavírus, os nomes dos responsáveis começaram a aparecer.
O primeiro foi da Isolux, empresa espanhola, que no processo de privatização ganhou a construção e a administração da linha de transmissão entre a hidrelétrica de Tucuruí e Macapá, o “linhão de Tucuruí que interligou o Amapá e o Amazonas ao sistema elétrico nacional.
Como administradora da linha, a Isolux era, em tese, a responsável número 1 pelo apagão. Mas esse era apenas o começo da história. Em recuperação judicial e cheia de dívidas, a Isolux repassara em 2019 a concessão para a Gemini Energy, empresa controlada pelo fundo de investimento Starboard Asset. A Gemini possui 85,04% das Linhas Macapá Transmissoras de Energia (LMTE) e os restantes 14,96% estão nas mãos da Superintendência de Desenvolvimento da Amazônia (Sudam). Considerada por diversos especialistas como uma empresa sem expertise no meio, a Gemini fez questão de anunciar que tinha avisado a Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel) dos problemas do terceiro transformador, sem previsão de data para o conserto. Nos interstícios desse jogo de empurra-empurra, alguma luz começou a aparecer.
Segundo ato
De fato, apurou-se que em 2008, a Isolux participou do leilão de linhas de transmissão e assumiu a construção e a administração das linhas entre Tucuruí e Macapá, operando por meio da controlada, a LMTE. Com problemas financeiros, a empresa espanhola vendeu a LMTE para a Gemini, em 2019. Ou seja, sem participar de licitação, tampouco comprovar a competência técnica, a Gemini assumiu um negócio com incidência direta sobre a vida de 765 mil pessoas. A Aneel, agência que deveria ser a controladora e fiscalizadora do Estado brasileiro, assistiu a tudo sem providência a não ser aplicar multas inócuas à Isolux e silenciar quando foi informada pela Gemini que o terceiro transformador não tinha data para ser reparado.
Além da inadimplência, incompetência e omissão, o blecaute do Amapá tem outra vulnerabilidade. Quando foi licitado o trecho Tucuruí-Macapá, não foi exigido da empresa arrematante (Isolux/LMTE) que construísse torres de transmissão fazendo o caminho de volta entre o Amapá e o Pará. Ou seja, o Amapá ficou literalmente pendurado num único fio, ligado à subestação que se incendiou, sem alternativa para caso de acidentes.
Como é uma espécie de ponto final do sistema de transmissão, Macapá obrigatoriamente teria de ter essa segunda linha de transmissão, que aliás existe em todos os sistemas da região Centro-Sul., Mas no edital, o governo brasileiro não exigiu, a Isolux/LMTE não construiu e, assim, os amapaenses ficaram totalmente expostos, sem saber, aos apagões.
Terceiro ato
Em 6 de novembro, depois de três dias de escuridão total, o Ministro de Minas e Energia, Bento Albuquerque, ao lado do presidente do Senado, Davi Alcolumbre, anunciou o restabelecimento pleno da energia em dez dias. Para tanto, as autoridades confiavam que um dos transformadores pudesse ser restaurado ao mesmo tempo que outro seria transportado de Laranjal do Jari, no sul do estado, numa operação de logística complexa.
Dois dias depois, com o funcionamento do gerador danificado, a meia-boca, foi possível iniciar o fornecimento racionado de energia para as diversas regiões do estado, inclusive a capital. No entanto, a emenda saiu, se não pior, tão ruim quanto o soneto. A completa irregularidade na chegada e desaparição da energia trouxe mais prejuízos e irritou ainda mais profundamente a população. Começaram a correr boatos sobre casos de bairros privilegiados onde não faltava luz, ao mesmo tempo em que na periferia se multiplicavam almoços solidários, onde os frangos dos vendedores de espetinhos eram oferecidos aos moradores antes que a carne apodrecesse. Nas ruas, à noite, multiplicavam-se fogueiras e barricadas de protesto.
Como consequência, as autoridades começaram a sair da letargia e nos dias 10 e 11 se puseram a divulgar medidas para tentar aplacar a indignação pública. O Ministério do Desenvolvimento Regional anunciou a liberação de R$ 21,6 milhões para aluguel de geradores e compra de combustível. A Aneel propagou a abertura de um inquérito para apurar as causas do apagão. O Tribunal de Contas da União aprovou a realização de uma auditoria sobre o caso e o Ministério de Minas e Energia anunciou ao aumento da oferta de energia com a entrada em operação de uma unidade da hidrelétrica Coaracy Nunes, localizada no município de Ferreira Gomes, distante 137 quilômetros de Macapá. Porém, eram iniciativas distantes e sem efeito prático para quem estava sofrendo os males terríveis provocados pela falta de energia.
As pesquisas dos candidatos a prefeito, em Macapá, começaram a registrar sinais de um abalo sísmico. Os sintomas mais alarmantes apareceram nos levantamentos de Josiel Alcolumbre, candidato dos governos municipal, estadual e federal, ou seja, das autoridades que a população via, de uma forma ou de outra, como responsáveis pelas agruras.
Com as eleições marcadas a quatro dias, e com os indicadores apontando Josiel fora do segundo turno, uma medida estapafúrdia e sem precedentes precisaria ser tomada, e foi. Utilizando, o prestígio como presidente do Senado Federal, Davi Alcolumbre, irmão de Josiel, conseguiu que o Tribunal Superior Eleitoral adiasse as eleições em Macapá, formalmente, atendendo a um pedido do TRE local. A decisão foi por demais estranha. Afinal de contas, dos 16 municípios do Amapá, 13 estavam sem energia (Oiapoque, no Norte, possui sistema isolado de abastecimento, enquanto Laranjal e Vitória do Jari, ao sul, não estão ligados à subestação sinistrada) e as eleições foram adiadas tão somente em Macapá, exatamente onde o candidato do DEM estava enfrentando dificuldades. Em Santana, cidade conurbada a Macapá, onde o candidato dos Alcolumbre estava na frente, as eleições foram mantidas. A eleição na capital foi remarcada para 6 de dezembro.
Ao se defender das acusações de que o adiamento visava unicamente beneficiar o irmão, em queda livre nas pesquisas, Davi Alcolumbre declarou que Josiel fora o maior prejudicado, uma vez que venceria no primeiro turno. A declaração causou uma onda de repúdio entre os macapaenses. Dizer que um rico empresário era o maior prejudicado pelo apagão foi acintoso para centenas de milhares de pessoas privadas de luz, água, comunicações e comida.
E o calvário para os macapaenses continuou. No dia 16 de novembro chegaram as balsas trazendo dezenas de geradores termoelétricos (movidos a diesel) para o restabelecimento total da energia. Na noite seguinte, um novo apagão total abalou os moradores dos 13 municípios. A luz só foi restabelecida no início da madrugada. No dia 21, a convite de Davi Alcolumbre, Bolsonaro visitou Macapá para acionar os geradores das termoelétricas. Apesar disso, vários bairros de Macapá seguiram sem energia. À noite, a Polícia Militar contabilizou 120 protestos com incêndios e barricadas pelas ruas da cidade.
Quarto ato
A indignação dos macapaenses pode ser melhor sentida quando se sabe que o Amapá é um estado exportador de energia, com quatro usinas hidrelétricas em funcionamento, produzindo seis vezes mais quilowatts que o necessário para abastecer o estado.
Até 2012, dois terços da energia consumida no Amapá era gerada por termelétricas, que chegavam a queimar 1 milhão de litros diesel por dia, sendo o outro terço fornecido pela pequena usina de Coaracy Nunes, inaugurada pelo ex-presidente Ernesto Geisel (1974-79) e construída com o dinheiro dos royalties da extração de manganês na Serra do Navio. Essa situação começou a se alterar, quando a então ministra das Minas e Energia, Dilma Rousseff, em meio ao processo de privatização, estimulou a construção de usinas hidrelétricas em todo país, garantindo a participação privada desde o início da obra, assegurando maiores ganhos às empresas vencedoras dos leilões. Assim, em curto espaço de tempo, foram construídas as usinas de Santo Antônio e Jirau, em Rondônia, e Belo Monte, no Pará. Mas, apesar do potencial hidrelétrico, o Amapá ficou fora desse boom. Por não estar interligado ao sistema nacional, a energia gerada não poderia ser vendida.
Por causa disso, o início das obras do linhão de Tucuruí foi saudado com esperança tanto pela população, que enfim teria a tão sonhada segurança energética, como pelas empresas de energia, que viram a oportunidade do bom negócio. Rapidamente foram construídas as hidrelétricas de Ferreira Gomes e Cachoeira Caldeirão, no rio Araguari, e a de Santo Antônio, no rio Jari, está um sonho antigo de Daniel Ludwig (1897-1992), bilionário norte-americano que concebeu o Projeto Jari. Num piscar de olhos o Amapá passou da condição de dependente a exportador de energia e, mesmo assim, sofreu um violento apagão. Como foi possível? A resposta é simples: para ter aproveitamento doméstico a energia em alta tensão, produzida por hidrelétricas, é preciso haver a transformação em corrente de baixa tensão, para uso domiciliar. E no Amapá, apenas, um terço da energia gerada é transformada, uma vez que o destino não é a população amapaense e sim a exportação para outras praças, via o linhão de Tucuruí.
Final (por enquanto)
A energia foi restabelecida plenamente em todo estado, apenas em 24 de novembro. Foram 21 dias de sofrimento que revelaram ao Brasil uma parte dos mecanismos perversos do processo de privatização da energia, no qual a leniência e o descaso marcham lado a lado, com um prejuízo imenso socializado pela população. Demonstraram também o tratamento desigual sofrido pela Amazônia, que sob o jugo de uma espécie de mandato colonial, é condenada a fornecer matéria-prima (no caso, energia) para grandes conglomerados e cidades do país, sem que seus povos recebam os benefícios da utilização dos recursos naturais.
Finalmente, em 20 de dezembro, poucos dias antes do Natal, foi disputado o segundo turno das eleições municipais em Macapá. Bolsonaro apareceu na TV, pedindo votos para o candidato do DEM, mas não adiantou. A população soube identificar os responsáveis pelo apagão, o cortejo de dissabores e nas urnas derrotou o candidato do Planalto. Um final iluminado para uma tragédia que se desenvolveu na escuridão.