Eloísa Machado de Almeida
Isso não é novidade. Muitos dos estudos que buscam compreender as razões pelas quais o Judiciário se tornou um ator central no cenário político brasileiro creditam esse fato à Constituição Federal de 1988. Uma Constituição vasta em direitos e um Judiciário com competências superlativas seriam algumas das explicações para que este assumisse papel central nas disputas políticas.
Mesmo que se reconheça que o protagonismo do Judiciário é, em parte, consequência do arranjo constitucional, é inegável que se acentuou nos últimos anos. O ponto de inflexão parece ter sido o julgamento da Ação Penal 470, conhecida popularmente como mensalão. Foram dezenas de sessões plenárias televisionadas, que culminaram com a condenação de réus poderosos, alçando ministros e juízes ao status de heróis e tornando o Judiciário um ambiente propício para a implementação de uma agenda de moralização da política, representada em decisões como a que proibiu o financiamento de campanhas por empresas.
Entretanto, é na chamada Operação Lava-Jato que a centralidade do Judiciário toma proporções inéditas. Conduzidas simultaneamente na primeira instância de Curitiba e no STF, as ações penais decorrentes dessa operação foram capazes de atingir todo o setor de construção civil no país, com o encarceramento inédito de grandes empresários. O juiz Sérgio Moro, que conduz os processos em Curitiba, tornou-se o novo herói nacional e não hesitou, aproveitando-se de grande legitimação popular, em abusar de prisões preventivas, conduções coercitivas e quebras de sigilo.
No STF, as ações penais assumiram ritmo distinto, o que não as impediu de gerar enorme instabilidade. Foram decisões do Supremo tomadas nas ações da Lava-Jato que conduziram o desfecho do impeachment da presidente Dilma Rousseff. Ao analisar as decisões no processo de impeachment, percebemos um pequeno grau de interferência, dando a impressão de que o tribunal se ateve apenas à delimitação do processo decisório. Mas, ao conjugar o processo de impeachment com outras decisões, tomadas no âmbito da Operação Lava-Jato, tornasse possível perceber que o STF foi ator central da crise política que culminou com o impeachment presidencial e a ascensão de outra força política ao poder que não por meio de eleições.
A prisão em flagrante do senador, então líder do governo, Delcídio do Amaral; a suspensão da posse de Lula como ministro da Casa Civil, após quebra de sigilo de gravações de interceptações telefônicas pelo juiz Sergio Moro; a suspensão do exercício do mandato de Eduardo Cunha após a aprovação do impeachment na Câmara dos Deputados são alguns exemplos de decisões extraordinárias que impulsionaram, cada uma em seu momento, o processo de impeachment, tornando o Judiciário parte responsável pela ruptura democrática e constitucional.
Uma vez encerrado o processo de impeachment e afastada definitivamente a presidente, as ações da Operação Lava Jato arrefecem sem que o tribunal adote qualquer medida mais gravosa diante de novas delações, dando espaço para questionamentos sobre sua imparcialidade e seletividade. Mas isso não significa dizer que tenha se abstido de participar do embate político. As decisões tomadas no âmbito da Lava-Jato são exemplos, também, de como o Judiciário reconfigurou suas relações com o Legislativo, criando precedentes inéditos de interferência entre os poderes da República. Mas não sem reação.
A resposta do Legislativo veio na forma de um projeto de lei para tratar de abusos de autoridade cometidos por promotores e juízes, prevendo a criminalização de atividades centrais da persecução criminal. Vinda de parlamentares envolvidos, em grande escala, em atos criminosos, o projeto foi visto como um ataque às investigações, deixando o necessário debate sobre controle do sistema de justiça esvaziado.
O projeto de lei, apadrinhado pelo presidente do Senado, Renan Calheiros, foi causa de novo embate entre Judiciário e Legislativo. Em um primeiro momento, foram julgadas ações que procuram impedir que um réu ocupasse a linha sucessória presidencial, o que acabou gerando uma decisão inédita pelo afastamento de Renan do cargo. A decisão do tribunal foi declarada e claramente descumprida pela mesa diretora do Senado e por seu presidente, obrigando o tribunal a voltar atrás em sua própria decisão.
Depois, o projeto de lei sobre abuso de autoridade teve a sua tramitação suspensa por outra decisão judicial, alterando definitivamente a forma como o Judiciário lida com as questões internas do Legislativo. Se antes havia uma certa deferência aos procedimentos de outro poder, respeito a temas interna corporis, hoje o tribunal se sente confortável em alterar qualquer tema na criação de leis e na escolha de líderes. Este grau de interferência deve continuar em 2017. Já há ações judiciais pedindo ao tribunal que impeça a candidatura de Rodrigo Maia, atual presidente da Câmara dos Deputados, para mais um mandato à frente da casa.
Em um mesmo ano o Supremo prendeu um senador, afastou presidentes da Câmara dos Deputados e do Senado Federal, impediu a posse de ministro de Estado e chancelou o afastamento de uma presidente da República. Poderá ainda definir as regras para os líderes das casas legislativas, impactando a dinâmica própria das negociações do mundo político.
Não há dúvidas, portanto, que o Judiciário assumiu para si um protagonismo inédito no país. Mas, nem toda responsabilidade recai sobre os seus ombros, pois sendo um poder inerte, responde apenas quando provocado.
Por esta perspectiva, há que se atentar para o papel crucial desempenhado pelo procurador-geral da República: foram os seus pedidos que acarretaram as medidas mais gravosas em 2016. Sem dar transparência às suas escolhas, aos porquês de investigar uns e não outros, fortalece-se a crítica de que há uma atuação seletiva e direcionada politicamente na Operação Lava-Jato.
De outra parte, são os partidos políticos e os parlamentares que recorrem ao tribunal. O sistema político acaba tutelado judicialmente porque, ao que tudo indica, é incapaz de resolver por si só e com suas regras as disputas e conflitos que emergem nas casas legislativas. Assim, parte do enfraquecimento do sistema político e da supervalorização do Judiciário é de responsabilidade dos próprios partidos políticos e parlamentares, deputados e senadores, que preferem ver as questões decididas pelo tribunal. É evidente que há exceções, necessárias salvaguardas ao trabalho de minorias parlamentares, mas não foi isso que moveu o Judiciário nestes últimos anos.
O Judiciário foi enorme na política, mas minúsculo em direitos. O maior exemplo talvez tenha sido a chancela judicial à Emenda Constitucional 95, que impõe um teto de gastos no Orçamento e rompe com a lógica do Estado Social previsto originariamente na Constituição. Outras reformas virão, como a trabalhista e a da Previdência. Tudo indica que não haverá óbices, assim como não houve na reconfiguração do direito de greve feito pelo Judiciário.
Por estes fatos, não seria estranho argumentar que o Supremo Tribunal Federal e a Presidência da República, ambos sem votos, estão implementando um novo projeto de país, à revelia das regras democráticas e da Constituição.